segunda-feira, 24 de maio de 2010

LIVRO UM - Capítulo 1


A pancada foi seca, mas muda. O barulho dos dois motores Continental de 220 cavalos, companheiros já de algum tempo, se fazia ouvir pela porta aberta do meu Sêneca de 25 anos, idade perfeita para uma mulher, um pouco demais para um avião. O choque com a copa das árvores, ao fim da pequena pista, da qual decolara há dois minutos, preocuparia qualquer piloto com um mínimo de juízo. Mas não a mim. Sou piloto de garimpo. Sou o máximo.

O garimpo de diamantes em terras da reserva indígena do Parque Aripuanã, Município de Pimenta Bueno, no Estado de Rondônia, a 700km de Porto Velho, emprega todo tipo de gente, até aqueles que não o são. Aqui tudo é arriscado e ilegal. Grandes somas de dinheiro, na mão de aventureiros incorrigíveis, geralmente dólares oriundos de compradores de pedras alemães, franceses e hindus, atraíram naturalmente uma pessoa como eu.

A atividade garimpeira por si só não é ilegal. Mas quando ela envolve desmatamento de parte da Floresta Amazônica, a invasão de reserva indígena (que também é reserva florestal), a extração de pedras preciosas sem o controle dos órgãos reguladores da produção mineral e sem licença ambiental; a corrupção de indígenas, agentes, fiscais e policiais, tanto estaduais quanto federais, a venda do diamante, sem o recolhimento de impostos, feita a estrangeiros que saem clandestinamente e entram ilegalmente no país portando somas indecentes; não só afronta a Lei, é uma panela de pressão cuja borracha  já não é mais aquela: é estouro na certa.

Assim, aos trabalhadores braçais de cujos embornais já não sai nem mais uma gota de esperança, aos camelôs e mascates especializados em “artesanato” da China, que produz mal tudo que você acha que pode comprar com esse dinheirinho pouco, vindo via Iquique (porto do Chile) e La Paz (Capital da Bolívia), comerciantes de outras tantas coisas, barbeiros, mecânicos, lavadeiras, açougueiros, prostitutas, sapateiros, juntam-se os pilotos de avião. Normalmente veteranos de outros garimpos, sabem que enquanto voarem suas velhas máquinas, quase sempre em condições impossíveis, são preciosos para aquela atividade.

Naquela manhã, oito horas antes, o sol raiara cínico e cáustico pela janela quebrada do quarto do hotel, cujo gerente ainda acreditava que eu era capaz de pagar o ínfimo aluguel, cobrado semanalmente e invariavelmente empurrado e acumulado para a semana seguinte.  Aquele sol exageradamente quente, já às 6 e meia da manhã, era prenúncio de mais um dia em que suas roupas estarão pregadas em sua pele até o anoitecer. O banho rápido pouco melhorou o calor ao  qual não me acostumaria nunca. Sempre gostei de acordar cedo, se é que me lembro de ainda gostar de alguma coisa. Hoje o dia seria cheio, mas poderia ser o dia em que minha vida começaria a melhorar.

Dois dias antes, havia feito um vôo em que havia lançado, no meio da selva, de 150 metros de altura, um conjunto motor e bomba de 3 polegadas. Destinado a um garimpeiro de diamantes, pesando uns 280 quilos, desmontado e acondicionado em seis trouxas de sacos de aniagem, uns dentro dos outros, o que amortecia o choque com as árvores e o solo, o equipamento era parte importante da prospecção daquelas adoráveis pedrinhas. Decolamos, eu e um “pau-mandado” do meu contratante, com as benditas trouxas que encerravam agora não um motor-bomba, mas um intricado quebra cabeças de partes de aço fundido, acoplamentos e parafusos, tanque e dutos, bases e eixos, meia dúzia de rolamentos e buchas, latas de lubrificante. Também levávamos oito botijões desses de gás de cozinha, cujas válvulas foram retiradas e agora eram fantásticos recipientes à prova de queda, repletos de óleo diesel. Quarenta minutos depois, após um sobrevôo cego sobre porção de mata densa, onde provavelmente estaria o acampamento, avistamos a fumaça de sinalização.

O procedimento era padrão, se é que operar contrariando todos os princípios do vôo seguro pode ser inspiração para alguma coisa correta, mas vá lá: os garimpeiros, ao escutarem o avião, acendiam uma fogueira com folhas verdes. Assim que a fumaça ultrapassava a copa das árvores, o vento se encarregava de transformá-la numa esteira branca que indicaria ao piloto a direção do vento e a origem do sinal. Assim, avistado o local de lançamento, tomei a perna do vento, ensaiei uma curva base de aproximação contra o vento, flaps a 15 graus, tirei os motores, pouco passo nas hélices Hartzell, velocidade aí pelas 80 milhas, quase em estol, gritei para meu lançador que jogasse o primeiro dos sacos, pela grande porta, logo atrás da asa esquerda. Marquei o ponto de lançamento no GPS e, vinte e cinco minutos depois, os quatorze volumes principais e mais cinco ou seis menores haviam sido lançados. Com a proa em Pimenta Bueno, a volta foi mais um agradável passeio, me fez pensar o quanto seria bom poder estar aqui em cima por mais tempo... 

O expediente de lançar coisas em áreas inacessíveis era corriqueiro. De comida, bebida, combustíveis, peças de reposição até revista de mulher pelada e cigarros, lança-se tudo de avião. A alternativa é morosa e ainda mais cara: subir o rio de “voadeira”, pequeno barco de alumínio, tocado a motor de popa, por três longos dias. E ainda: grandes distâncias eram percorridas a pé. Por isso, os períodos de estadia dos garimpeiros, nas áreas de lavra, chegavam a vários meses, evitando-se assim, ao máximo, o deslocamento pelos rios. Vários deles chegaram a me confidenciar que estariam dispostos a pular de pára-quedas para evitar pelo menos a ida às áreas garimpeiras. Sempre ria muito dessa conversa, mas, ao final, cuidava de falar sério, explicando a incompatibilidade do salto com a selva fechada abaixo.

Ao pousar, antes ainda de calçar e ancorar o avião, me aparece o Mauro, o agenciador de cargas, acompanhado à distancia por um sujeito suarento que podia ser tudo, menos garimpeiro. Estes eu já conhecia até pelo andar.

- André, seu filho da mãe, já estava me preocupando com você. O cara do combustível disse que mais uma vez você não completou os tanques. Você sabe que isso é errado, além de perigoso. – Ele era sempre apavorado...
- Bom dia, Mauro, como tem passado? E a família, as crianças... – Devolvi como se não entendesse o assunto.
- André, eu estou falando sério, vem aqui de lado um pouquinho...- Me afastou de seu acompanhante que já se aproximava. - Você sabe que deve lotar os tanques, é procedimento padrão. Sabe que não gosto da maneira como você voa...
- Mauro, eu estou devendo ao retalhista da gasolina há mais de três meses, agora só abasteço à vista e o dinheiro não era suficiente para completar. O dinheiro está sempre curto. Manter o Bruno na faculdade, a Camilla no balé, e ainda os caprichos da louca que é a mãe deles, é brabo... – Falei baixo, mas com veemência.
- André, essa desculpa é velha. Você ganha bem pelos seus vôos. O que te complica é estar em coma alcoólico três dias por semana. Sai dessa vida, velho. Mas, vem cá, vou te apresentar um cliente.

Apresentações feitas. O sujeito suarento é um topógrafo de São Paulo, responsável e técnico de uma empresa que ganhou concorrência no Incra para levantamento e demarcação de terras indígenas, ou reserva florestal, sei lá...O fato é que ele queria contratar o lançamento de víveres para sua equipe de campo, que, pelo telefone via satélite, havia relatado a perda de parte do que havia ido pelos rios, por naufrágio de uma das embarcações. Se o que foi perdido não fosse reposto, teriam que iniciar a volta sem ao menos iniciar o serviço, blá, blá, blá...

E eu achando que ao pousar poderia fumar um Malboro Lights  e ir tomar um “Macieira” no bar do Plínio,  seguir para o hotel e ver se meu crédito remanescente me permitiria almoçar fiado...

Mas, vamos lá. O Mauro, cioso dos dez por cento que ganharia pelo agenciamento da carga, estava explicando pro “branquelo”, que agora suava em bicas, que o peso, para a autonomia que era necessária, não poderia ultrapassar 600 quilos. Falaram do acondicionamento da carga, nos sacos de aniagem, para suportar o choque com as árvores, o procedimento de sinalização, as possíveis perdas, etc...

Será que os garimpeiros haviam encontrado todas as partes do conjunto motor-bomba que havia lançado pela manhã? Fico imaginando se um daqueles sacos fica preso numa castanheira, árvore que chega fácil aos quarenta metros de altura. E ainda, depois de encontrados os pedaços, montar o complicado equipamento, dispondo de poucas e toscas ferramentas. O desafio é imenso. O calor, os mosquitos, onças e cobras. Mas na carga vieram notícias dos parentes, pilhas para os rádios de ondas curtas e lanternas, carne seca (porque peixe todo dia enjoa), remédios, sabonetes e a playboy daquele mês.  O garimpeiro é mais herói que louco. Mas tem muitos daqueles que parecem ser só loucos.

O Mauro se achava agora naquela parte chata de explicar ao freguês de primeira viagem o porque da quantia exorbitante pedida em troca do lançamento iminente. Os custos de manutenção e controle da dispendiosa aeronave, que por ser um bimotor pode operar mais longe e com mais carga, mas consome combustível aos borbotões, os riscos envolvidos, o piloto automático permitia que o lançamento fosse feito pelo próprio piloto, dispensando o necessário ajudante e permitindo mais carga útil, etc...

Fazer comércio é coisa que a humanidade faz com maestria há cinco milênios. Árabes, sumérios e egípcios nos ensinaram a arte de vender nossas supervalorizadas porcarias por muito dinheiro, o mesmo que vai valer tão pouco na hora de trocar pelo que necessitamos, e por aí vai. Nunca fui bom nisso. Acho que só sei mentir em meu desfavor. Por que as coisas não são feitas com o preço normal e justo gravado nelas? Muito tempo, negociação e pechincha, seriam poupados. Será que funcionaria? Mesmo assim admirava os que tinham aquele dom, e principalmente a paciência para aquele jogo.

- André, tudo acertado. – Lá estava o Mauro sorridente. Gosto desse sujeito. Parece amigo e sincero, às vezes até verdadeiramente preocupado comigo. Chegou algumas vezes a me buscar no bar do Plínio, e pedindo que abrisse mão da sexta, sétima ou oitava dose, me carregou ao hotel e, me jogando na cama, fez sermões intermináveis e incompreensíveis para mim, já àquele alto nível etílico. Cuidava de mim com uma condescendência que denunciava nossa franca cumplicidade. Ou será porque meus vôos sempre colocam algum no seu bolso? Não sei, e a essas alturas, importa muito pouco.

Sorri, por pura e hipócrita cortesia, para o homem branco que já estava vermelho e se desmanchando em suor. Vi eles se despedirem com entusiasmo exagerado, felizes com o negócio feito. Eu e meu companheiro alado ali, amarrado ao chão, um beduíno e seu camelo, colocados à força numa caravana na qual,  nem o kalifa sorridente ou o kalifa suarento arriscariam seus traseiros. Será que a vida tem mesmo um propósito para cada um de nós? Ou o que somos é só resultado de um exercício sem-graça de probabilidades que quase sempre nos leva contra o que nossas mãezinhas sonharam para nós?

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