segunda-feira, 24 de maio de 2010

Capitulo 3


Rondônia é ainda um estado novo, apesar de desbravado pelo Marechal Rondon, ainda no comecinho dos milenovecentos, o herói que plantou postes de telégrafo pelo Brasil afora. E agora, transformado em fronteira agrícola e madeireira, está desabrochando seu potencial. Terra de aventureiros no passado, agora tem o forte toque do agri-business, as ruas esburacadas das jovens cidades estão sempre cheias de camionetas novas, guiadas por gaúchos e paranaenses enchapelados, sempre portando grossos talões de cheque da agência local do Banco do Brasil. Sempre me chamou a atenção esse tipo de crédito dado a esmo, só para gerente cumprir cota, que brindava muitas das vezes apenas um aventureiro que estava ali só de passagem. E eu, que nem crédito tenho, me colocaria onde?

Aqui em Pimenta Bueno, onde o agora insofismável agro-negócio tem um dos focos também na imensa produção de bananas, o garimpo ainda movimenta muito dinheiro, nota-se o comércio viçoso e alguns novos ricos que já se exibem sem remorso. Atravesso a rua do hotel e entro no bar do Plínio, onde o primeiro conhaque já está demorando.

Plínio é um gaúcho que está aqui há duas décadas, recebeu um lote de terras do Governo, gastou o dinheiro que pegou no banco, mais o resto do que tinha, no beneficiamento da fazenda: desmatou, plantou capim, construiu cercas, pôs gado, abriu estrada, fez represa. Trabalhou feito louco, quase morreu nas duas vezes em que pegou malária, mas não ganhou o suficiente para pagar o Banco. A fazenda foi a leilão, a dívida paga em parte e agora, o pequeno bar, em nome de um parente próximo que mora distante, era a atividade desse outro e último amigo feito por aquelas bandas. A história daquele homem magro e alto, feio por causa do nariz adunco, era quase toda só tristeza, mas ele era um cara bem resolvido e quase feliz. Dizia sempre saber que a guerra estava perdida, mas se sentia bem comemorando as pequenas batalhas vencidas na luta do dia a dia. É cada uma... 

- André, e o vôo, como foi? Correu tudo bem? O Mauro passou por aqui mais cedo, preocupado. Disse que tu tinhas decolado com  pouca gasolina, e tal... O que houve contigo, chê? – Vinte anos e o sotaque dos pampas estava lá, firme.
- Você conhece o Mauro, fica me pajeando como se eu fosse criança. O vôo foi de rotina e correu bem... – Respondi por obrigação, essas demonstrações de preocupação quase sempre me chateavam.

Plínio me serviu o aguardado Macieira. Fez cara feia antes de servir o segundo. Para evitar mais um comprido e dispensável sermão da montanha, resolvi voltar logo ao hotel e almoçar, estava com fome. Àquela hora, calor demais, todo mundo tinha o que fazer à sombra. Atravessei a rua arrastando os pés. O térreo do hotel era quase todo tomado por um restaurante mobiliado com simplicidade pobre. A comida insossa e fria diminuiu o mal estar de comer sem pagar. O arrendatário do restaurante do hotel, um paranaense cujos óculos de fundo de garrafa estavam sempre engordurados, era gente muito boa, nem se importava com a pendura contumaz,  e ainda a ponto de nem perceber que sua patroa, uma maranhense baixinha, vivia me sussurrando improbidades, com voz macia que só ela  tinha, no português bem falado do Maranhão. Às vezes, quando tinha paciência para ouvir seus gracejos, chegava a me lembrar do tanto que era boa a companhia feminina. Vinha dar nas telhas a lembrança de mulheres as quais amei, mais ou menos, por mais ou menos tempo, entre elas a mãe de meus filhos, nessas horas ainda com aquela carinha boa que me levou ao altar.

Mulheres. Um amigo de meu pai tinha um discurso de uma hora sobre o poder que as mulheres tinham sobre os homens, e não sabiam. Aliás, poder sobre o mundo. Ria alto e me dizia que nenhum carro de luxo, roupa de griffe, perfume, sapatos e jóias; seriam vendidos ou comprados por homens, se não fossem as mulheres. Para não dizer que hotéis de luxo, salões de barbeiro, restaurantes e resorts badalados estariam todos às moscas. Sempre me moveu a idéia de que realmente, não fossem as mulheres, o mundo estaria entregue a uma horda de bárbaros barbudos e mal-cheirosos, andando em carros velhos e sujos, imunes à propaganda e as armadilhas sexuais da mídia. E se elas percebessem que o mundo gira em torno da necessidade de conquistar seus favores, aí sim estariam cientes do poder que têm. O mundo só é machista porque é a elas que ele pertence. Só que elas não sabem...

Voltei ao Plínio. O bar estava cheio, eram sete da noite. A mesa de sinuca estava sufocada por uma dúzia de pobres-diabos, sebentos e barulhentos, jogando a dinheiro ou apostando nos que ainda estavam meio sóbrios para segurar os tacos. As bolas lascadas sobre o veludo que já havia sido verde eram o resumo da pobreza do lugar. Putas gordas, de um descolorido triste, já tomavam seus lugares de costume, na esperança de pescar um bagre que ainda tivesse algum dinheiro e que não estivesse cheirando tão mal. Lembrei-me do poder que elas têm e  não sabem. Fiquei com pena...

- Plínio, coloca mais um conhaque ai...
- André, você precisa parar com a bebida. Gosto de ti barbaridade, mas assim não dá. Tome só mais um e já conversamos mais... – Entendi que assim que desocupasse, queria conversar comigo.  O cara cismou que é meu irmão mais velho. Mas gosto dele assim mesmo.

Peguei o copo e fui até a última mesa vaga. O barulho, vindo de bêbados e marafonas, subia acima da inacreditável nuvem de fumaça, vinda de cigarros baratos. Ambiente ruim. Companhia ruim. Vida ruim. Mas a bebida é boa e me faz sentir menos ruim.

Preciso ir dormir, se é que isso é possível num calor assim. Amanhã preciso ir ao banco, ver o que faço com a ninharia que, tomara, já deveria estar lá, mas antes, devo ir até a pista ter com meu (e do banco) avião, ultimar preparativos para o frete dos víveres dos topógrafos que perderam sua comida, coitados.

- André, tu não está bem... – Plínio arranjou um tempo e veio até minha mesa de lata encardida, ladeada de duas cadeiras tortas e uma quebrada, vítima tartamuda, provavelmente, da última das freqüentes brigas dali. Antes de falar, ficou um tempão esfregando as mãos num paninho encardido, como se estivesse pedindo desculpas pela indesejada intromissão.
 - Estou bem, Plínio – menti, até para ver se ele parava de massacrar o paninho sujo – Estou só relaxando um pouquinho, fazendo um quilinho do almoço quase janta, um conhaquinho, um cigarrinho e já vou dormir. Amanhã devo te pagar um pouco do que pendurei aí...
-Não te preocupes, André, por mim não. Sabes que só me paga se estiveres abonado. Tem falado com teus guris?
- Anteontem. Bruno diz estar gostando do curso de Engenharia. Camilla, já fez treze anos e continua firme no balé. Menina estudiosa, ainda bem que puxou a mãe...
- E tua ex, muita brabeza?
- Sabe como é ex-mulher, ela quer todo o castigo do mundo desabando sobre minha cabeça. Parece que vai pedir ao Juiz outro mandato de prisão. Não entendo. Cada precatória de mandato de prisão que vier aqui vai me quebrar por meses, como na última vez. Gastei uma fortuna pagando propina pra renca da delegacia de capturas de Cacoal. De delegado a escrivão e motorista da viatura, todo mundo levou o seu... Assim, só vai  ficando mais difícil pagar as pensões atrasadas...
-  Por que tu não conversas com ela?
- Porque não há mais clima para conversa. Depois de um “oitudobem” gelado, vem um sermão interminável, seguido de uma choradeira terrível, com acusações de toda ordem. Reconheço as enormes burradas que fiz, mas preciso convencê-la de que essa tortura não me fará voltar no tempo e evitar o mal-feito...
- E teus guris, não ajudam a melhorar o clima? – Plínio perguntou já sabendo a resposta, também ele tinha ex-mulher e filhos.
- Eles se sentem na obrigação de estar ao lado da mãe, é compreensível. Acho que entendem minhas razões, mas daí a mudar a cabeça da mãe, vai um quilo e uma rapadura.
- O goiano fala engraçado, barbaridade!
- É... Vou me deitar, o calor já cedeu um pouco. Amanhã acordo cedo... Obrigado pela preocupação, mas minha vidinha é um pouco complicada mesmo... 

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