As estrelas piscam para mim e dizem que já passa da meia noite. Percebo que estados de consciência e quase coma se alternam e se confundem. O cheiro podre de minhas carnes é a diferença entre estes e aqueles momentos. Trinta e seis horas, desde o desatinado mergulho nesse oceano verde. A certeza de que chegou o fim acalma meu espírito.
Teria trocado a vida que não tive pela visão de Camilla, já aos treze, e que faz balé desde os sete, dançando o solo final do Quebra-nozes, peça que aprendi a gostar sem saber porque. Ela já está mulher feita, me procura na platéia escura com ânsia no olhar. Por que ela não me vê? Estou aqui! Faço tudo que posso para chamar sua atenção. Noto que ela já erra alguns passos, o peito forte arfando com os soluços. Ela está linda, os cabelos pretos armados num delicado coque no alto da cabeça perfeita, queixo de quem sabe o que quer...
-Camilla! Estou aqui, seu pai...- Acho que grito. Ela continua olhando, as lágrimas já inundam as faces de veludo pálido. Os passos do balé mil vezes ensaiado já são trôpegos. Seus olhos correm pela platéia, o silêncio é ensurdecedor. – Camilla!...
Se ter um filho é o que te completa como homem, ter uma filha te completa como gente. É fantástico ver nascer uma mulher. Perceber sua delicada presença se tornar o perfume forte que nos nocauteia já no primeiro round. Vê-la tomar ciência, em poucos instantes, de que é capaz de causar estragos, os mais deliciosos. Vê-la aprender usar tão rapidamente as armas que ganhou da natureza para compensar sua aparente fragilidade. Se uma mulher te faz bobo, uma filha te faz babar. E é maravilhoso estar vivo só para olhar... Só estando fora de mim, ter me permitido passar tanto tempo longe de meus filhos. Ah, Camilla. Não podia ter prescindido de te ver crescer, te ver aprender lidar com o mundo nessa graça que só você tem.
Agora é tarde, preciso dormir, sonhar mais com você, pensar que escutou tudo que queria ter dito a você. Só se entregue a quem te mereça, cuide de sua mãe, olhe por seu irmão, finja que seu pai foi seu Pai. Minta histórias fantásticas para os netos a quem o destino tirou o colo do avô. Netos. Devem ser o que faz valer a pena ir até o final da jornada que, para mim, interrompeu-se antes da hora.
Lembrei-me do embaraço que minha morte ia causar pra Alice. Ser mulher separada, numa sociedade machista como a brasileira, ainda é complicado. Ser quase viúva de um ex-marido deve ser dose! Tenho certeza de que nossa tentativa de reconciliação, além se sua preocupação com os meninos, pode ter sido pelo incômodo de estar dando explicações, o tempo todo, pra todo mundo. Um homem sozinho, seja de qualquer idade, nunca merece o escrutínio de alguém. Já, uma mulher sozinha, ladeada de crianças, ainda por cima, desperta o interesse geral: é presa fácil para renovar o falatório. –“A coitadinha deve ter sofrido o diabo...” ou pior, “A piranha deve ter metido chifres no coitado...”, e por aí vai...
Quando me ponho a pensar no meu casamento com Alice, a cabeça dói. Tudo me faz crer que nos precipitamos, que devíamos ter tentado mais. Havia a empatia, o tesão, a atração, a amizade, até mesmo amor. A vaidade de querer estar sempre certo, o egoísmo que não nos permite repensar nada, a curiosidade por saber se aquela vida de solteiro ainda estaria lá, tudo ajudou – ou pior, atrapalhou - e tudo se desfez, em pura insensatez.
Alice, em que esquina eu te perdi? Você podia ter segurado minha mão, ou ter me dado com a mão nas fuças, eu sei que mereci... Qualquer coisa, eu precisava de você e não sabia. Desmereci sua presença e não soube pesar sua falta. Acho que era você que eu procurava nas mulheres que pude ter. Foi você quem faltou nas mulheres que tive e não quis mais... Foi um erro pensar que o que o pouquinho que faltou para ainda estarmos juntos é hoje um vazio que não se preencheria jamais.
Dói a falta das lembranças simples que nossa vida complicada apagou. Dói a falta das lembranças das pequenas viagens, da rotina regrada, das fraldas no varal... Do dia a dia das crianças, os deveres escolares, os bichinhos de estimação, as briguinhas, a choradeira por motivo nenhum. Acho que o Bruno teve uma roupinha de marinheiro. Ou ganhou um uniforme de time de futebol, acho que do avô. Como isso agora é importante! A Camilla ganhou uma medalha numa olimpíada de escola. Foi salto? Corrida? Oh, meu Deus...
Por isso é fácil amar Astrid. Ela é a segunda, terceira chance que não mereço. É a vida me testando, querendo ver se aprendi as lições, se já posso colocá-las em prática. É a prova de que eu devia ter insistido em meu amor por Alice. Devia ter me deixado levar pelas forças que nos atraíam. Gozar da presença de Alice e das crianças teria sido tudo o que eu queria. Aprendi, agora tenho certeza, mas o tempo acabou, antes de ver que nunca me faltou o tempo, só me faltaram força de vontade e atitude...
Era inevitável. Tentei não pensar em minha mãe. Poço de carinho e amor incondicional, do qual bebi sem me dar conta ou importância, fadado ao desperdício. Por que teve que ser assim? Por que não fui o filho que te mereceu? Queria muito acreditar que nos encontraremos no céu, preciso me explicar, mamãe...
Já eram dez da manhã, acho, não tenho mais forças para ficar vivo. Sabia que essa hora chegaria, me perguntei sempre se estaria preparado... O manto da morte já me oferece conforto.
Escuto o barulho de um helicóptero. Ou anjo...
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