Decolamos já depois de cinco da tarde, rumo à cidade de Jataí, no sudoeste goiano. O vôo foi nervoso, o tal de Nonha me ameaçava toda vez que perdia de vista a estrada que servia de orientação a ele. O Pedra, no banco de trás dormia feito pedra, mesmo. De vez em quando arrotava, deixava o ambiente apertado ainda mais fedido, e voltava a dormir. Um pouco antes de chegarmos à cidade, o negro mal-educado fez sinal para mudar de direção e apontou uma pequena seqüência de morros que não chegava a merecer o nome de serra, mas tinha a particularidade de expor falésias de arenito vermelho.
O sol já se punha à nossa frente, quando o sujeito que me quebrou o dedo apontou, com o cano do trintaeoito, uma fazenda com pista de grama bem conservada. Pousei e parei o avião perto de um Cessna 170 de faixas grossas em dourado forte. Avião que não me era estranho. Mas, já anoitecia e eu estava apavorado demais para pensar em outra coisa que não fosse escapar dali. Quando abri a porta para sairmos, fomos recebidos por dois caras armados de pistolas, com bandoleiras de couro cru onde não havia menos de duzentos projéteis em cada uma. Estavam calçados de tênis coloridos que estavam deslocados naquele ambiente rural. Seriam de fora, com certeza. Fui algemado, mas com as mãos diante do corpo. Mal sinal, significava que estaria o tempo todo assim. Ninguém estaria disposto a me soltar para mijar, por exemplo, muito menos me ajudar a tirar da braguilha meu amiguinho inseparável...
Fui jogado num quarto escuro, sobre uma espuma, que deveria ser o colchão. Esbarrei o dedo quebrado em alguma coisa, fiquei muito tempo gemendo e encolhido sobre o chão nojento. Quando a dor amainou e consegui abrir os olhos, eles já haviam se acostumado à escuridão e tomei outro susto. Encolhido no outro canto estava um outro coitado, algemado também. Pior foi quando balbuciou meu nome.
-André, lembra de mim, viu o avião lá fora?- Meu deus do céu, era o Jaques, associei o sotaque ao Cessna e me lembrei dele claramente, um catarinense novato que eu conhecia do aeroclube, falando baixo que eu quase não ouvia. Me aproximei, notei que também seus pés estavam atados. Falou de novo mais baixo ainda. - Preciso te falar. Não converse com ninguém antes de falarmos a sós. – E me fez sinal para voltar para meu canto.
Recostei à parede e comecei a prestar atenção à minha volta: quarto típico de fazenda, provavelmente para guardar sementes ou acomodar peões, pois dava para a grande varanda e não se comunicava com o salão de visitas. Casa alta, moderna, mas feita com economia, não tinha laje, o telhado era totalmente visível, inclusive a claridade das luzes acesas nos cômodos contíguos. O barulho era quase de festa, muitas vozes e o tilintar de pratos e, principalmente, copos e garrafas. Não havia menos de dez ou doze homens por ali. Ali pelas dez horas, alguns já estavam bêbados e falando mais alto ainda. O que ouvi era de arrepiar: eu estava metido numa grande operação de importação de cocaína. Os telefones celulares tocavam o tempo todo, e pelo que entendi, as ordens vinham de Bangu I, presídio de pseudo segurança máxima do Rio de Janeiro. A porta se abriu e uma pequena panela de arroz com uns poucos bifes retorcidos jogados em cima, foi jogada deslizando pelo cimentado vermelho do piso. Meu companheiro de cárcere avançou sobre ela e, pegando a comida mais com a mão do que com a colher que havia sido jogada junto, comeu sofregamente, por vários minutos. Quando levantou os olhos, quase pedindo desculpas pela pouca educação, sussurrou: - André, estou sem comida desde anteontem, quando fui jogado aqui. Agora coma e vamos falar. Expliquei que estava sem fome, ainda estava sentindo o delicioso bolinho de bacalhau comido aos montes e regado a chope, de menos de sete horas atrás. Enquanto falava, Jaques fazia sinal para falar mais baixo, até entender que eu já tinha percebido o quanto mais baixo. Na realidade, estávamos falando um ao ouvido do outro, um por sua vez.
Esse catarinense, cujo nome ainda pensava ser Jaques, apareceu do nada e começou a freqüentar o aeroclube e a rodinha dos pilotos, que se reuniam, jogando conversa fora e café para dentro, à espera de trabalho, no barzinho da pista. Pagou hangaragem à vista, raramente voava, vivia por ali, assobiando, distribuindo piadas e tapinhas nas costas. Em pouco tempo já era tido como inofensivo e foi assimilado por todos.
Agora, estava me soprando ao ouvido a história mais louca desse mundo. Resumindo: primeiro, a operação que culminou com meu seqüestro. O Pedra começou dizendo que traria para a operação um piloto viciado que devia muito dinheiro a ele, mas que como estava numa fase abstêmia, teria que vir meio à força. Isso foi a três dias, quando chegamos aqui. Vim contratado regularmente pelo Nonha, sem desconfiar de nada. Quando pousei, fui rendido pelos pitbulls cariocas e jogado aqui. Esse Pedra, que eu já sabia ser da pesada, só apareceu depois. Mas o que você precisa saber é o que vou te contar agora. Essa é uma mega operação de tráfico. Vai haver uma reunião de umas vinte aeronaves pequenas em Corumbá, que vão buscar grande quantidade de cocaína em Pedro Juan Caballero.
Fiquei gelado. Mal estava organizando minha vidinha e já estou enrascado até o pescoço. Perguntei a ele o que fazer para escapar dali, e ele disse que não, devíamos aguardar uma oportunidade melhor. Isso me pareceu sensato, afinal aquela turba não era de anjinhos...
Por volta de uma da manhã, o barulho cessou e alguém passou um cadeado pelo lado de fora de nossa porta. As luzes se apagaram, eu só ouvia os passos dos guardas de sotaque carioca fazendo ronda curta e metódica em volta da casa. Tentei dormir, o dedo quebrado já latejava loucamente, mas o cansaço era tanto que logo estava cochilando.
A cocaína já tinha minado a confiança que eu já havia tido das pessoas. Já havia afastado minha família para longe de mim. Já tinha me levado ao fundo do poço, várias vezes, me deixado à míngua, endividado, sem amor-próprio. Agora que estava praticamente me livrando do vício, com exceção de raríssimas carreirinhas de brincadeira, estava voltando a ele pela porta do fundo, pelo crime de tráfico, pela violência, pelo mal absoluto, pela sacanagem bruta. A porta da frente, que dava para salões da alta sociedade, festas cult e centros acadêmicos de faculdades, eu já havia conhecido antes. A droga se traveste de passagem para o mundo das pessoas descoladas, super-bonitas e ultra-legais. Vem num pacote irrecusável, inicialmente de graça, pela mão de um amigo gente boa, e aí não pára mais. Vai entrando em sua vida, te fazendo pensar que tudo é fácil e está ao seu alcance. Logo, seu mundo desaba e você vira um chato que está sempre incomodando, querendo droga de graça porque nunca tem dinheiro, só enche o saco. E aí te varrem para debaixo do tapete. Outros bocós estarão lá preenchendo o lugar que você deixou naquela festa interminável, onde mudam apenas os convivas, mas, quem está ligando?
Agora estava vendo os bastidores daquela porcaria. Estava dentro daquilo e sabia que estava lá pela opção errada de ter cheirado a primeira carreira daquele pó de mentiras.
Dormia pesado quando a coronhada na porta me acordou. O Jaques, que agora via claramente, já estava de pé, coçando a barba quase vermelha, já de uns cinco ou seis dias. Disse que já havia pousado um outro avião alguns minutos antes, e que estaria havendo mais uma reunião. Praguejou alto e disse que o recém chegado nada mais era que um chefão que não só deveria estar preso no Cepaigo, presídio agrícola de Goiás, nos arredores de Goiânia, mas ainda estava lá acompanhado pelo sorridente diretor do Presídio! O Sêneca, avião que eu já tanto admirava e desejava, ostentava as iniciais do bandidão, O e M, na fuselagem. É o fim das épocas, exclamei com raiva incontida, traficante importante agora se dá ao luxo de ostentar até monograma no avião particular, e ainda carregar a tiracolo o diretor do presídio onde deveria estar trancafiado, proibido até do banho de sol!
Os três aviões decolaram perto das nove horas, com destino a Corumbá, no Mato Grosso. Voavam comigo o Nonha, um dos cariocas de tênis e um sujeito magro e bem vestido que falava baixo o tempo todo num celular via satélite. Chegando a Corumbá, fomos desviados para outra pista de fazenda, esta de terra e recém aberta, perto de uma sede mais modesta que a de Jataí. Meio da tarde, sol quente, a poeira demorou a dissipar. Com os aviões ordeiramente perfilados ao fim da pista, fomos levados para debaixo de um telheiro atrás da sede, e algemados, eu e Jaques, ao grosso pilar de aroeira. Só então percebi que o Jaques cuspia sangue. Perguntei ao meu pobre amigo o que houve, ele fez sinal para que me calasse, que mais tarde explicaria tudo. Veio um almoço de macarrão e salsicha, que comemos com as mãos. Quando vieram buscar os pratos, pedi um cigarro e ganhei um chute nas costas. Me dobrei, mais pela pancada do que pela dor, e já queria matar todos aqueles caras só com as mãos, com dedo quebrado e tudo!
O Jaques me estendeu um cigarro amarrotado e pediu desculpas por não ter mais o isqueiro, que havia sido confiscado. Levei aquela porcaria aos lábios e assim fiquei, o cigarro apagado, sentindo o cheiro familiar do tabaco, que tanto me confortava.
O Jaques pigarreou e começou a falar. Comecei a arregalar os olhos logo no início da história. Ao final já estava até com a boca aberta. O até agora Jaques se chamava João Urbano, nascido em Florianópolis, tinha pai americano e dupla cidadania. Já morava nos Estados Unidos há cinco anos, tinha se formado na academia do FBI e agora estava no DEA, o departamento federal americano de narcóticos. A missão no Brasil já durava oito meses, e ele estava infiltrado no meio aeronáutico, relatando a movimentação de drogas no cerrado do Brasil, quase toda ela destinada ao crescente mercado norte-americano. Estava baseado em Goiânia porque é por ali que muitas das coisas acontecem, afinal a droga entra basicamente pelo Centro-Oeste, e via Rio e São Paulo, vai para a América do Norte.
O Jaques, ou João Urbano, agora eu não sabia mais, já tinha percebido a movimentação do Pedra, braço do tráfico carioca para preferencialmente, Brasília, grande consumidora de drogas e uma beira, também importante, para Goiânia, cidade de novos-ricos ávidos por novidades que os colocassem ao nível dos globalizados cariocas e paulistas. Foi pego de surpresa pelo Nonha, achando que fosse fazer só um vôo tranqüilo a Jataí. Pegou o serviço só para não chamar muito a atenção dos outros pilotos, que já desconfiavam que ele voava muito pouco. Quando viu, estava no meio da merda que estava tentando descobrir. O azar é que, por ter sido surpreendido, não conseguiu avisar a retaguarda instalada no novíssimo, moderníssimo prédio da Policia Federal em Goiânia. Além de policiais brasileiros, mais um americano fazia parte da operação “white parrot”, papagaio branco, vê se pode...
Assim, uma mega operação do tráfico internacional de drogas, envolvendo cartéis colombianos, o comando vermelho, Marcinho Vp, Orlando Moura e Fernandinho Beira-Mar, e mais a todo o esquema de Bangu I, que estava sendo monitorada há meses pelo DEA e FBI americanos, bem como a PF brasileira, que dependiam desse pobre coitado pego com as calças na mão, impossibilitado até de avisar seus companheiros.
- André, já sei de suas broncas, levantei sua ficha. Sei que já se entregou à droga, mas reconheço que é gente boa. Quando tentei falar ao rádio, para avisar da deflagração da operação, o tal de Pedra me deu uma coronhada na boca que me fez cuspir dois dentes e quase um litro de sangue. Quero que me ajude a fazer isso, não posso arriscar mais minha identidade de policial. Você precisa me ajudar, é necessário contatar a mesa de controle da operação. Vou te falar a freqüência fechada e você decore de uma só vez, não haverá tempo para dúvidas. – O apelo era dramático demais para passar despercebido. Prestei atenção aos números da freqüência e os decorei, mas desanimado. Achava difícil ter acesso ao rádio...
- Jaques, João, já quebraram a minha mão só por tentar falar com o controle Goiânia. Não sei o que posso fazer, mas vou ver. Agora preciso pensar nisso tudo.
E agora, fazer o quê? O pouco que eu tinha de herói gastei até o último bago no episódio com o velho Comandante Félix. Depois disso, virei um comodista adepto daquela outra citação cínica: “mais vale um covarde vivo do que um herói morto”. Procurei sempre não estar por perto de desfechos trágicos. E agora essa! Algemado a um abacaxi de proporções ituanas, que está prometendo merda de todo jeito!
Ao anoitecer, vieram nos buscar para explicar como seria nosso papel naquele filme de terror. Na manhã seguinte, voaríamos a Pedro Juan Caballero. Pousaríamos em uma pista clandestina, seríamos carregados com coca prensada em tabletes de cinco quilos, cinqüenta pacotes em cada avião. Voltaríamos e pousaríamos em outra pista a cem quilômetros dali, seríamos descarregados com o motor ainda funcionando, decolaríamos sem olhar para trás, e voltaríamos para onde estamos agora, onde seríamos abastecidos e novamente voltaríamos à Bolívia, repetindo o trajeto até que fosse dada a ordem de parar. Outras vinte aeronaves já estavam também a postos, em outras oito pistas ali em volta. Como aquela, poderiam ter sido abertas nos últimos dias. Era uma operação gigantesca até para um bobão como eu. Essa movimentação maluca, quando fosse percebida pelo Cindacta, já teria terminado e vinte e cinco toneladas de cocaína já estariam camuflados a bordo de cinqüenta caminhões, todos de uma grande distribuidora de cerveja, que, rotineiramente, já passavam por todos os postos de polícia sem despertar suspeita, até um esquema em Viracopos para embarcar aquela porcaria para os EUA, direto, sem escalas. Cada caminhão acomodaria a carga de dois aviões, e assim por diante. Ao final da operação, cada piloto receberia um bônus de dois pacotes, dez quilos do pó, ultra puro, sem misturebas, valendo trezentos e cinqüenta mil dólares no mercado brasileiro. Era pegar ou morrer. O Pedra nos explicou, diligentemente, que os outros pilotos tinham sido recrutados voluntariamente, e que os únicos que estavam ali à força éramos nós. Por isso, voaríamos com os meninos de tênis, para qualquer eventualidade ou mudança de planos. Deram-nos sanduíches de mortadela e refrigerantes em lata, cigarros, um boa noite quase maternal e nos arrastaram de volta ao tronco de aroeira. Nova noitada de bebedeira, mas tudo estava calmo depois da meia noite. O Jaques, que eu nunca mais chamaria de João, estava desesperado. Eu, já que não tinha outra opção, já estava pensando em como gastar os trezentos e tantos mil dolecos...
- André, precisamos fugir e avisar o controle. Uma operação de tráfico tão importante exigiria meses de preparação do nosso lado, o que é impossível. Mas tenho certeza que alguma coisa pode ser feita, mesmo em tão pouco tempo. – Jaques falava cuspindo, a boca inchada da agressão pelo Pedra.
- Mas, Jaques, fazer o quê? Estamos sob o controle total desses caras, não há o que fazer, a não ser tentar sair vivos dessa merda toda! – Falei meio sem convicção, parece que ficar do lado desse sujeito não estava pagando quase nada. Apostar nele parecia uma furada.
- André, você não está entendendo. Nós já estamos mortos, essa turma é barra pesadíssima, nós não vamos sair dessa com vida, isso é certeza. Até acredito no bônus de dez quilos, isso é usual, e é atrás deles é que estão os meninos do rio, o Nonha e o Pedra. Nós somos descartáveis e já estamos fritos!
A lógica de seu raciocínio me bateu na cara como um balde de água gelada. Ele tinha razão. Ninguém ganha em negócios com esses senhores. Só se perde, e muito. Mesmo naquele outro lado, aquele descolado e super legal, a lógica era idêntica. E eu já tinha sentido isso na pele.
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