segunda-feira, 24 de maio de 2010

Capitulo 16


O sol nasceu no Mato Grosso, já cansado de nascer por todo o Brasil. Acho que por aqui já usam o fuso de Rondônia, duas horas antes de Brasília. Mas o que isso importava agora?  Fomos acordados aos gritos, e corremos para os aviões. Assim que entrei no meu avião, vi o aparelho celular via satélite do janota que não parara de falar, na viagem até aqui. Deve ter tido um faniquito qualquer e esqueceu que tinha deixado o aparelho no avião. Não tive dúvidas, enquanto o meu “segurança” aguardava a ordem de decolar, ele estava me vigiando do lado de fora, aproveitei para ligar o aparelho e tentar identificar os números que antecediam os números ligados para o Brasil. Foi fácil, peguei um deles, suprimi os dez últimos números, inseri o código DDD de Goiânia e o número da polícia militar, 190. Apertei a teclazinha verde e pus o telefone no colo. Quando atendeu o motor já estava funcionando e podia falar dentro da cabina sem que minha sombra lá fora percebesse. Gritei para o telefone que quem atendesse passasse a ligação para a Policia Federal, mesa de operações papagaio branco, acho que era isso. Enquanto isso, o menino carioca já estava do meu lado, dizendo que os calços já tinham sido tirados e que já podíamos decolar. Senti que a ligação já estava na mesa da PF, agora era improvisar:
- Puxa cara, se soubesse que vir a Pedro Juan Caballero me renderiam dez quilos de pó, eu vinha alegre e sorridente. Já estaria em Corumbá desde a semana passada, com os outros vinte pilotos.
- Cala a boca e voa essa bosta! – Me pôs a pistola na cabeça e vi que estava falando sério. Senti que a ligação caiu. Aproveitei a movimentação de táxi e decolagem para deixar o aparelho com aquela antena enorme deslizar para debaixo do meu assento e continuar esquecido.

O dia foi cheio, a cada duas horas e meia fizemos um raid, três no total. Na pista clandestina de Pedro Juan, em cinco ou seis minutos de solo, o avião já estava carregado, a decolagem era imediata, a perna da volta tinha que ser abaixo de 500 pés, e, vinte minutos depois, já estava pousando no lado brasileiro, na pista onde a droga era passada para os caminhões de cerveja. Mais dez minutos, já estávamos voando para a pista poeirenta, onde os tanques eram completados, e tínhamos trinta minutos para o re-check e descansar, tomar água, urinar. Com o rádio totalmente mudo, aquilo só poderia funcionar se os horários fossem muito justos ou, realmente, os outros pilotos estavam voando por vontade própria. No segundo pouso em Pedro Juan, quando pousei, já estava no solo um Cessna 180 Stationer. O menino de tênis me mandou parar, e deixar para terminar o táxi de aproximação apenas depois que o outro avião decolou. Aquilo era uma operação que só daria certo se tivesse muita gente envolvida. Eu não tinha a menor idéia de que aquilo seria possível. Estava embasbacado. Setecentos e cinqüenta quilos de cocaína. Isso daria para destruir a vida de mil adolescentes e jovens, levando junto as esperanças e sonhos de famílias inteiras. Estava mortificado de estar fazendo daquilo.

Sob a mira do diabo de tênis, voltamos à nossa base. O dia estava no fim, estava morto de cansado, meu dedo pulsava loucamente, o corpo doía demais e, pior, eu estava emocionalmente acabado. Estava cego de ódio e frustração, devia, só não sabia como, ter feito alguma coisa, qualquer coisa. Deitei no chão do pequeno alpendre, me encolhi sobre minha barriga e me senti um aborto dessa humanidade da qual não mais queria fazer parte. Acho que dormi, quando me chutaram os rins já era quase noite, o Jaques também estava deitado ao meu lado, só que dessa vez havia ganhado mais uma coronhada, dessa vez na testa, de onde, de um corte muito feio que já estava fechado pela coagulação, havia saído o sangue que empapara sua camisa pólo. Estava com os olhos injetados, já não demonstravam mais nenhuma luz.

Fui levado ao tronco do telheiro do fundo e nele algemado, sozinho. Um tempo qualquer depois, que nem percebi, devo ter dormido pendurado, o meu grande amigo Pedra veio me trazer um cigarro aceso. Me acordou com um cascudo na fronte. Pelo bafo horroroso de fim de dia podia sentir que já tinha bebido, provavelmente comemorando o sucesso daquela loucura.

- Seu amigo Jaques foi pego tentando falar no rádio. Levou mais uma para largar de ser besta, aquele metido a herói. Vamos ficar aqui até amanhã, quando virá meu pagamento. – O Jaques tinha mesmo razão, éramos apenas um meio desse bandido ficar com vinte quilos daquele pó dos infernos...
- Pedro, me tira as algemas, sabe que não vou pra lugar nenhum. - Chamei aquele facínora pelo nome de batismo, talvez para sensibilizá-lo um pouquinho. – Se você me tivesse chamado para o serviço, eu teria vindo normalmente, nem precisava ser na marra... – Quase engasguei falando essa asneira.
- Ok, seu Andrézinho, vou mandar te soltar, mas me dê a chave do avião. Você entende, eu não posso facilitar. E tem outra, preciso que me faça um servicinho extra. Seu amiguinho disse que ia nos dedar para a PF, o sujeitinho tem coragem mesmo. Acabou morto de pancada e temos que deixar ele bem enterradinho... Ainda bem que você já me conhece e sabe que tem que ficar de biquinho fechado...

O choque da notícia foi maior do que a frieza nos olhos daquele homem, que já não trazia mais nenhum tipo de humanidade. Ainda bem que ele se virou e andou de volta para a casa, senão teria me ouvido praguejar. Que ódio, não é possível que gente assim consiga se dar bem o tempo todo. Tem que haver algum tipo de justiça que alcance um verme desses. E o pior, estava achando que eu ia  rodar também. Em um minuto, um dos cariocas de tênis veio e soltou as algemas, também me apontou a arma e me conduziu aos fundos do pomar que já não tinha cuidados há anos. Empurrou-me para um buraco que não tinha mais do que um metro e meio de comprimento, por menos de um metro de largura, cuja profundidade ainda não chegava  aos meus joelhos. A pá enferrujada já estava caída lá dentro. Alguém já tinha começado o serviço e deve ter gostado da idéia de ter um substituto. Comecei a cavar pensando se aquela cova de medidas erradas para acomodar um corpo humano não seria para dois. E o pior, o dedo quebrado tinha voltado a latejar com a movimentação da tosca escavação. Cavei até ali pelas nove da noite, sem parar. O medo de morrer me fez dar o máximo de forças que ainda tinha. Se for pra ser morto, então que fosse logo, esse pavor era pior.

Me puxaram de dentro do buraco quando ele tinha a altura de meus cotovelos. Foi ai que vi o corpo do Jaques. Tinha o rosto e mãos desfigurados, foi espancado até a morte, tentando se defender, com mãos nuas, das coronhadas de um fuzil que não pesaria menos que uns quinze quilos. O desgraçado do Nonha ainda limpava, com uma flanela molhada e já lavada algumas vezes, mas ainda com manchas  vermelhas, os últimos restos do meu amigo ainda pregados na coronha da terrível arma de morticínio. Tinha sido arrastado pelo cinto, o corpo estava dobrado, e a camisa, enrolada até as axilas. Dignidade nenhuma. Parecia só lixo de açougue. Meu Deus, isso não podia  continuar, alguém precisa parar esses caras.

O enterro foi cheio de gargalhadas e comentários cínicos. Me fizeram jogar toda a terra, até os últimos sinais de que ela tinha sido revolvida, e cobriram a sepultura de meu amigo com folhas e galhos secos. Cova rasa, anônima e indigente; para um cara que merecia uma medalha.

Dentro da casa, ficamos todos sentados ao chão. Pedra e Nonha jogavam truco, os meninos maus calçando tênis dividiam um único fone ligado a um walkman que tocava pagode. Já tinha havido mais movimento, mas deviam ter ido embora. Um sujeito magro e barbado, a quem eu não tinha visto antes, apareceu pela porta da cozinha anunciando o jantar. Já eram onze e meia da noite. Enchi uma bacia plástica do mesmo macarrão e salsicha de sempre, e antes que me sentasse ao chão, me chamaram para a mesa. Comi avidamente, tentando não pensar em nada. Não ouvia nem a zoeira daquela turba, só queria que a terra me tragasse e me poupasse do que ainda estaria por vir.

E não demorou. Quando percebemos os ruídos metálicos fora da casa, alguns dos que estavam sentados até se levantaram, mas  já caíram baleados. Homens vestidos de coletes, coturnos, capacetes, viseiras e luvas pretas, portando rifles com uma lanterna fortíssima, entraram atirando e cegando a todos. Um deles me arrastou para fora da mesa e me jogou na parede. Caí desacordado, mas pensava ouvir uma imensa gritaria histérica e aparentemente sem comando. Acho que voltei à posição fetal de horas antes e fiquei esperando alcançar o Jaques na sua última estrada.

Quando acordei daquele horrível transe em que quase tudo ouvia, mas nada entendia, e a nada reagia, já estava sacolejando na traseira de uma perua ou van. Pensei que, já que estava pronto para tudo, devia recostar o corpo e tentar descansar até ter a chance de poder entender o que estava acontecendo.

Só acordei quando o carro parou em definitivo. A porta se abriu diante da Delegacia de Corumbá, perto de uma igreja que ficava numa praça florida. Fui arrancado lá de dentro, cambaleando, e empurrado para dentro do pequeno prédio. Em meio a muita gritaria e palavras de ordem fui enfiado a pontapés numa cela pequena. Estava preso. Sozinho, me arrastei para o canto e recostei de novo. Estava muito cansado para querer sair daquele pesadelo. Momentos depois, ouvi o sino da igreja badalar, eram seis da manhã. Pensando nos meus pecados, fechei novamente os olhos.

- Ô bela adormecida, já é meio-dia, toma aí sua marmita, aproveita que é por conta do Governo! Daqui a meia hora volto pra te levar ao banheiro. Não vá cagar aí pelo canto. Esta é a sala do arquivo da delegacia, por isso não tem banheiro.– Abri os olhos. Deve ser o carcereiro.
- Amigo, preciso conversar com o delegado, com alguém...- Gaguejei e emendei com cara de coitado.
- Amigo é a puta que te pariu! Vê lá se vou ser amigo de traficante. E preso meu não quer nada, tem é que estar prontinho para atender o delegado ou o juiz, mas só na hora em que for chamado. – O vozeirão vinha de um gorducho baixinho, os poucos cabelos ralos ajeitados com goma na careca luzidia.
- Me desculpa eu só quero ajudar. Eu...
- O que é, a mocinha também é alcagüete? Põe a cara aqui na porta para ver o resto de seus comparsas fazendo a cara de quem quer seu pescocinho! Vem cá! Se tem um cabra que eu odeio mais do que bandido, é dedo-duro!- Porque todo baixinho é metido a brabo desse tanto?
- Não, moço, não precisa. Vou ficar quieto aqui. – Detestei estar falando como um moleque assustado. Mas afinal, não era isso que eu estava sendo, desde aquele longínquo sábado quando fui arrancado de uma mesa de bar?

Quando o relógio da igreja marcou duas da tarde, meu anjo da guarda virou a chave da porta de ferro: - Vamos lá filhinho da mamãe, tomar banho e fazer pipi. – Acho que esse sujeito pensa que está agradando. Não disse nada, aceitei as algemas e o segui calado, em direção à carceragem. Portas com grossas barras de ferro  foram abertas até o banheiro de uso comum, com certeza o banheiro mais nojento em que já tinha postos os pés. Foi até bom, fiz uso resumido do que precisava e voltei à porta. Na cela em frente, estavam o Pedra, um dos rapazes do Rio, com um olho preto e muito inchado e o Nonha, com um curativo imenso na cabeça, que estava, todo ele, muito sujo de sangue. O olhar do Pedra já dizia tudo: eu só ainda estava vivo porque não tinha dado com a língua nos dentes. Algemas no pulso, voltei para o arquivo.

Quatro da tarde, disse meu amigo sino. O ogro do cárcere veio me dizer que o delegado queria me ver às cinco. Estou com sorte, vou ter para quem contar minha história e sair dessa pocilga.

O Delegado do Vigésimo Distrito Policial do Mato Grosso do Sul, Seção de Corumbá era um rapazote enfiado num terno grande, o rosto quase imberbe navegando no colarinho. Pegou na minha mão, meio sem graça por eu estar algemado. Havia uma fila de documentos pessoais, com fotografias, muito bem arrumados sobre o vidro da mesa antiga. Falou, sem saber por onde começar:
- Sr. André, há quanto tempo pilota para traficantes?
- Doutor, eu nunca fiz isso antes, e dessa vez foi à força. Estava seqüestrado na mão desses bandidos. Sou só um refém desses assassinos!
- Sr. André, fale baixo e pausadamente. Vou esclarecer minha posição. A Federal fez batidas relâmpago durante toda a noite, prendeu mais de sessenta traficantes e cúmplices, e lotou três ou quatro distritos da região. Recebi quatorze presos até agora e não sei nada da história. A única instrução que recebi foi para que colocasse o Sr. em cela separada, porque foi o único que não estava armado e nem revidou. Agora, se pensa que vou acreditar na sua historinha, esquece, viu? Só mandei o Sr. vir para ver se podia adiantar alguma coisa.
-Por favor, preciso avisar minha família. Vou deixar um número de Goiânia, é da casa de meus pais. Devem estar aflitos porque estou fora desde sábado. Por favor, mande que alguém os avise, que liguem a cobrar.
- Sr. André, eu não posso atrapalhar as investigações que com certeza já se iniciaram. Escreva o número aí, vamos ver, não prometo nada. Por enquanto o sr. continua detido. Obrigado. Natanael, leve o preso.

Quase ri. O carcereiro tinha nome de anjo, por isso fazia tanto gênero. Me levou de volta à sala e disse que o carcereiro da noite, que entrava às sete,  ia trazer um lanche e me acompanhar ao banheiro. Seu comportamento mudou, pode ser porque ouviu o pedacinho de história que eu tive chance de contar ao delegado.

Logo depois das sete, uma movimentação diferente no corredor trouxe o carcereiro da noite à porta. Com sotaque nitidamente nordestino, falou que logo viria comida e a visita ao banheiro imundo tinha que ser um pouco antes, afinal ele é um só, e a carceragem está cheia como o inferno. Gritei que entendi e fiquei esperando.

Lá pelas dez o paraibano Elias, esse tinha nome de profeta, veio trazer um sanduíche de pit-dog de praça, acompanhado desses refrigerantes de mentirinha. Me levou ao banheiro, aguardou assobiando, e ao soltar as algemas, já de volta à sala, pôs o pé na porta e ficou me assistindo devorar o sanduíche. O telefone tocou forte da mesa do delegado. Ele ignorou e puxou conversa.

- Os federais vão estar aí amanhã. Já tem dois no hotel. Qual foi a bronca de vocês? – O tom de intimidade era tamanho que contei a ele minha versão resumida, das três que já estavam prontas na cabeça, ainda tinha a longa e a extralonga. Acho que pulei alguma coisa importante, mas o telefone não parava de tocar, e estava me desconcentrando.
- É, esse negócio de tráfico esta dando cana brava. - O telefone tocou de novo. – Você precisa arranjar um advogado de São Paulo, senão tu tá  lascado... – O telefone tocava pela quinta vez, alguém atende esse negócio, pelo amor de deus! Coisa irritante. E o profeta ignorando solenemente os apelos do aparelho.
- Sabe, filho, vocês precisam se emendar. A vida de criminoso só termina em bala. Você é novo, é piloto de avião, por que não entra pra ser crente? Vai servir ao Senhor e ser útil à sociedade... Entrega sua vida pra Jesus e estará salvo. – Dos sermões do pastor, ele só guardou isso, deve ter dormido no resto. E o telefone, pela décima vez, esgoelava lá na frente.
- Já disse que sou inocente. Sou tão vítima quanto a sociedade. Vou provar tudo muito rápido e amanhã mesmo estarei fora daqui. Preciso de sua ajuda para falar com alguém em Goiânia. – O telefone tocou de novo. Ele fez cara de vencido, trancou a porta toda de chapa metálica, com exceção de uma portinha de grade, e foi se arrastando até a mesa do delegado.

Ouvi quando atendeu e ouvi os murmúrios da conversa. Achei até engraçado, conversa longa para uma delegacia naquele horário. Tentei ouvir as longas frases que o Elias resmungava, mas não conseguia. Vinte minutos depois, ele veio à grade e disse:

- Filho, tenho uma notícia ruim para você. Seus parentes ligaram de Goiânia avisando que seu Pai morreu hoje às seis e meia da tarde, de coração. Nada pôde ser feito. O enterro será amanhã às seis da tarde. Queriam falar com você de qualquer jeito, mas você sabe, eu não posso deixar. Perguntei como eles sabiam onde você estava e eles disseram que mais cedo o doutor delegado tinha telefonado, dando notícias suas. Tá vendo, é Jesus...

Meu pai morreu. Mas como, se estava seguindo o tratamento direitinho? Será que passou mal ao saber que seu único filho tinha sido preso fazendo tráfico? Mas eu sou inocente! Será que meu Pai fechou os olhos para tanto desgosto? A que horas aconteceu, antes ou depois da notícia da minha prisão? – Elias, por favor, preciso usar esse telefone! – Urrei pela portinhola, e ainda esmurrando a porta.
- Calma aí. – O Elias tinha voltado. – Só posso liberar se o delegado permitir.
- Explica para ele minha situação, preciso conversar com minha mãe, ela está precisando de mim! Eu preciso saber! – Chorei, desesperado. Não, minha mãe não estaria precisando de mim. Estive ausente ou surdo em todas as ocasiões em que poderia tê-la amparado, e essa dor eu sentiria até o dia em que chegasse minha vez.
- Está bem, vou tentar só uma vez. Já é quase meia-noite, ele pode estar dormindo. – Foi ao telefone, voltou balançando a cabeça. - Ele disse que sente muito pela sua dor, mas parece que os federais já assumiram e querem vocês incomunicáveis. – A última palavra quase não saiu. Ainda ficou fungando um minuto atrás da porta e se afastou sem dizer mais nada.

Meu Pai está morto e eu preciso saber se fui eu quem o matou.

Vomitei o sanduíche num canto e chorei. Chorei porque envergonhei meu Pai tantas vezes que perdi a conta. Chorei porque perdi a chance de agradecer a ele o Pai que ele foi para mim. Chorei por ter sido tão burro e não ter aproveitado a sorte de ter o grande Pai que ele sempre tentou ser para mim. Chorei pela pessoa torta que eu era. Chorei pelos meus filhos, que estavam com o pai na cadeia, preso por tráfico de cocaína. A droga destruidora de famílias, inclusive a minha própria. Devia ter morrido tentando evitar os vôos de ontem. Mil vezes estar morto e meu pai ter recebido a notícia de minha morte por ter tentado evitar duzentos e cinqüenta mil gramas de tragédia, a estar agora vivo e imaginando que ele morreu por ter descoberto no filho que tanto amou um mensageiro de agonia e morte em forma do maldito pó branco, que a essa hora estava a caminho de levar mais dor e sofrimento a outros pais e filhos.

Solucei baixinho até o sino marcar seis horas. Rezei, desajeitado. O corpo de meu Pai estaria sendo enterrado daqui a dez horas e eu não estaria presente. Eu tentaria, devia pelo menos isso ao homem que eu amava e não soube dizer. Preciso dizer perto de seu rosto o “eu te amo” que deixei de dizer desde que achei que já era bom demais para me entregar a estas frescuras. Preciso dizer a ele e vou dizer! Levantei-me de um salto e comecei a gritar pela grade da porta: - Elias, Natanael! Preciso de vocês. Venham aqui pelo amor de Deus! – Os dois vieram correndo pelo corredor e abriram a porta: - O que foi rapaz, tá doido? – perguntou Elias.
- Preciso estar no enterro de meu Pai, e vocês vão me ajudar! Onde está o delegado?
- Está no hotel, com os federais, tomando café. Vão estar aqui agora mesmo! – dessa vez quem falou foi Natanael.
- Não posso esperar, corra lá e avise que estou me enforcando e morrerei com tudo que tenho para contar!
- Ai, minha nossa, você ficou doido? Quer nos dar mais trabalho? O que você acha Elias, o rapaz quer ver o pai morto. Acho que vou lá. - Vi o Natanael correndo pelo corredor e já fui tirando o jeans que já vestia desde sábado, todo sujo do sangue que escorreu do dedo quebrado, que já estava do tamanho de uma laranja, e da cor de jabuticaba. O Elias ficou apavorado quando me viu amarrar uma das pernas da calça na grade do vitreaux da sala e a outra em volta do pescoço.
- Pelo amor de Deus, meu filho! Olha a besteira que você vai fazer!
- Elias, preciso ver meu Pai. Me ajude, faça todo escândalo que puder.
Já ouvia o tropel pelo corredor. Parecia que a coisa ia funcionar!
Pendurei-me na forca improvisada, fiz cara de louco, e logo tinha uns caras de terno, muito bem barbeados, me desembaraçando da minha fingida tentativa de suicídio. Revirei os olhos, foram buscar agüinha gelada e tudo. Ficaram impressionados com o estado de meu dedo, mandaram chamar um médico. Veio uma cadeira, me sentaram nela e comecei a falar:
- Meu pai está sendo velado em Goiânia, e vai ser sepultado às dezoito horas. Preciso sair daqui até as dez da manhã para poder dizer a ele que o amei por toda a minha vida e fui um imbecil por nunca ter dito isso a ele. O único jeito de provar que eu era refém desses vermes, é relatar o teor do telefonema feito do aparelho via satélite, que pertence aos traficantes, e que está no assoalho de meu avião, discado ontem às sete e meia da manhã, para o número 190, da Policia Militar do Estado de Goiás, onde a cadete Neusa prometeu colocar a ligação na mesa de controle da operação papagaio branco, na sede da Polícia Federal, operação conjunta do DEA e FBI, tudo isso me foi contado pelo agente João Urbano, codinome Jaques, que era refém e prisioneiro assim como eu, que foi morto ontem à noitinha e está enterrado no pomar abandonado da sede de fazenda onde fomos presos ontem à noite. Sei porque fui eu mesmo que o enterrei. Pelo amor de Deus, chequem minha história e me soltem a tempo de saldar essa dívida com meu Pai. Pelo que sei, foi a notícia de minha prisão é que causou o ataque cardíaco que o matou. Pelo amor de .... – desabei num choro que nem eu tinha programado, porque era verdadeiro e cabia naquele meu desespero. Enquanto eu falava, mais homens de terno haviam entrado e saído da sala. A movimentação foi crescendo, até novas bobinas de fax foram buscadas ali perto. Pela porta aberta eu sentia e ouvia a movimentação, mas continuava algemado à cadeira, onde, por trás dela, trabalhava um médico que já havia anestesiado e aberto o dedo quebrado, para uma desinfecção completa e imobilização mais adequada.
Minha sorte estava lançada e eu agora dependia daqueles homens de óculos escuros. Voltaram à sala mais algumas vezes, perguntando inclusive detalhes da operação dos traficantes. Respondia a tudo diligentemente, mas o meu companheiro de bronze pendurado no campanário da igreja já ia bater dez horas. O médico já estava terminando e eu precisava sair dali, ao encontro do meu Pai.

Minha conta era simples. Precisava tomar um avião pequeno até Campo Grande dali a quatrocentos quilômetros, duas horas e pouco. De Campo Grande a Goiânia, se desse a sorte de pegar avião de carreira, seriam uma hora de vôo e duas ou três de check-in, escalas ou transbordos. Acho que chegaria nos últimos minutos.

Dez e meia. Agora estava sozinho na sala arquivo. Arquivo morto. Algemado à cadeira, me arrastei com ela até a janelinha. Nada, ninguém. Só o burburinho de conversas abafadas. Encostei à porta e chorei. De novo. Ah, meu Pai. Que vida besta a minha, que me impediu de te ver e te amparar, na sua última hora! E minha Mãe, mesmo nunca tendo precisado de mim, com certeza gostaria de me ter ao seu lado. Preciso acordar para outro tipo de vida, mas onde achar forças?

Onze. Ouvi passos no corredor. Pendurei-me na grade, era o Elias. Abriu um sorriso para mim e fez sinal de positivo com os dois polegares. Tinha o semblante de uma criança que soube que vai ganhar o presente que tanto desejava. Só desmanchava o sinal de positivo quando espalmava a mão pedindo calma.

Onze e meia. Já estava desesperado, não agüentava mais ver o Elias ir até minha porta a cada dois minutos e ficar fazendo sinais de alegria. Para mim, ele já estava mais louco que eu.

Agora que já tinha perdido as esperanças,  já estava no chão da cela, num abraço esquisito com minha cadeira. Com o ouvido ao chão, percebi o estouro da tropa pelo corredor. Cinco ou seis pares de pés, no mínimo. Aconteceu alguma coisa. Duas horas. Me levantei, e já ia alcançando a porta quando ela se abriu abruptamente. Um daqueles homens de terno já estava tirando as algemas enquanto o outro dava a melhor noticia que eu tinha tido nos últimos dias. – Desviamos um jato HS da aeronáutica, que estaria voando de Cuiabá a Brasília, vazio. Ele vai pousar no aeroporto de Corumbá em quarenta minutos, e vai direto a Goiânia. No hangar do Governo do Estado, haverá uma viatura da PF que o levará ao cemitério. Estará acompanhado todo o tempo pelo agente César, que após o sepultamento, o encaminhará até nosso Edifício Sede, onde é nosso convidado para pernoitar e, amanhã  de manhã, prestar os depoimentos que se fizerem necessário. – Um outro me jogou um par de calças e uma camisa com as dobras ainda da loja.

Afinal pude contar com um pouco de sorte. Poderia dar o adeus final a meu Pai. Embarquei em Corumbá às três  da tarde, o avião tinha configuração executiva, com boas poltronas. Dormi as duas horas que demorou o vôo. Assim que pousamos, entramos na viatura que, com sirenes à toda, rumou para o cemitério. Às cinco e quarenta, quando apertavam a última borboleta do caixão de meu pai, entrei na sala do velório. Mal percebi a comoção que causei em todos e corri para abraçar minha mãe e meus filhos. – Meu filho, sabia que você estaria aqui para beijar seu Pai. – Estava com voz firme e pausada, mas exausta.

Meu Pai estava quase vivo naquele caixão. Gosto de pensar que ouviu tudo que disse para ele. A cerimônia foi bonita, o padre falou tudo o que precisava ser dito sem fazer notar o rebelde ecumênico que era meu Pai. Encerrada a cerimônia, despedi-me de minha mãe, que chamou o agente César de lado e perguntou se eu estaria preso. – Não, pelo contrário,  seu filho prestou  um grande serviço ao nosso País, mas precisa completar a tarefa. – Disse afetado. Prometi estar de volta em definitivo no outro dia à tarde. A viatura me levou à sede da Policia Federal. Quando fui entregue a outro agente, me despedi do agente César com um agradecimento efusivo. Ele já tinha consertado muito do estrago que eu teria que reparar com minha família.

Em alguns dias, tive de volta meu avião, a vida foi voltando ao normal, fiquei mais perto de minha Mãe que, por amor, nunca admitiu que o ataque de meu Pai tivesse sido por causa da notícia de minha prisão.

O resto da história, li nos jornais. O Pedra, que já tinha condenações por roubo e tráfico, está preso e pode ser extraditado a qualquer momento para os EUA, onde também tem condenação pesada. O Nonha, como qualquer um que mata um policial, foi assassinado, numa providencial rebelião de presídio, poucos meses depois. 

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