Duas e meia. Os minutos estão começando a se arrastar. Há uns dez minutos Astrid já havia notado uma pequena camioneta com dois homens claros e suarentos. Deviam ser os homens da firma de topografia, aguardando notícias da operação. Também estavam inquietos, o carro em que estavam se balançava ao ritmo do chacoalhar de pernas. Os olhares de dúvida se encontravam e aumentavam o embaraço. Ela não se agüentou, saiu do carro e se dirigiu a eles:
- Esperar André? Avião?- A língua era difícil, o nervosismo do momento piorava as coisas.
- Sim, senhora, o Sr. André levou uma carga até nosso pessoal de campo. Ele já devia ter voltado a uns quarenta minutos...- Estavam nervosos, mal dissimulando a dúvida que já ribombava na cabeça de todos.
Uma perua fechada, a velha Kombi presente na infância na Bélgica, chegou com o administrador da pista e um rapaz negro e muito alto, com o macacão ostentando a concha da Shell.
- É esse o pessoal, Pelé?- O homem se dirigiu ao rapaz negro com aquele cansaço comum ao sujeito que lutou a vida inteira para ter um empreguinho calmo e, de repente, as coisas começam a se complicar.
- É sim senhor, foram eles que contrataram o Seu André. Essa moça é amiga dele, eu acho... – O rapaz demonstrava preocupação.
- Senhores, há um registro de mayday para a aeronave do Sr. André. Ele fez um pouso forçado há algum tempo, as coordenadas informadas remetem a uma área do Parque Aripuanã para a qual não existem acessos por terra. – O homem suava enquanto balbuciava as palavras ensaiadas.
- O senhor quer dizer André fall down? Caiu? – Astrid estava em choque.
- Parece que sim, ou pousou em algum lugar dentro do parque. Uma equipe de buscas, num Bell Huey da Aeronáutica, decolou de Guajará Mirim e está se dirigindo para cá. Chegarão às quatro e meia.
- Ele conseguiu jogar a carga? – O topógrafo suarento estava branco.
- Nada sabemos com certeza. O controle Vilhena nos informou por telefone, junto com o boletim meteorológico, que é ruim: vai chover à beça, a partir do final da tarde... – O homem já estava gostando do esporte de ser portador de más noticias.
- Nós vamos tentar contato pelo telefone via satélite. Assim que soubermos de algo retornaremos. – Agora falou o outro dos topógrafos...
- O certo é esperar na sala da administração. Perto do telefone. – O homem queria sair do sol.
Astrid não sabia o que pensar. Entendera tudo pela metade. André caíra na selva e podia estar morto. Começou a soluçar baixinho. Seguiu o homem até a construção onde estava improvisada a sala de controle, se é que havia algum. Sentou-se na pequena cadeira empoeirada oferecida pelo sujeito, que, de dentro de onde devia ser um pequeno banheiro, trouxe um metro de papel higiênico barato, para as lágrimas que Astrid já não continha.
Quatro da tarde. Nada acontecia. Quatro ou cinco pessoas já estavam cochichando lá fora. O tempo já dava mostras de que estava mudando. Um vento forte soprava trazendo poeira da pista para empestear o ar, que já era irrespirável.
Momentos depois, entra pela porta rota o agenciador de cargas, o Mauro, que Astrid conhecia de vista. Sentia, por dedução óbvia, que ele já sabia parte das más notícias. Estava falando alto com o homem da pista, gesticulando para o telefone, falando muito rápido para que ela entendesse o sentido completo. Preferiu chorar baixinho e tentar lembrar-se, da infância longínqua, de uma reza para balbuciar.
Mauro estava desolado. No hotel onde esperava encontrar André já havia uma meia noticia do que estava acontecendo. Correu ao aeroporto e não ter visto o Sêneca de listras azuis foi o golpe de machado que abriu sua cabeça para o entendimento do que havia acontecido. O cara do aeroporto estava lá, tentando se lembrar do procedimento para esse tipo de coisa. Astrid chorava num canto, e ele já adivinhava porquê. E agora?
O vento agora já estava mais frio, prenunciando a chuva. Acima do barulho do vento, ouviu o farfalhar metálico dos rotores do helicóptero da Aeronáutica. Resgate Aéreo. O Helicóptero tem mais de trinta e cinco anos de uso, mas a última pintura foi recente, e sua figura é imponente e inspira confiança. Depois de um tempo que pareceu uma vida, o barulho cessou, a nave pousou e se aquietou. Mais um tempo enorme e uma porta lateral se abriu, de onde desceram dois oficiais de macacão abóbora e capacetes de astronauta.
Mauro se adiantou: - É meu amigo, precisamos ir rápido, vocês sabem onde ele caiu? – Gritou como louco.
- A situação está sob controle. – O anjo se chamava Tenente Aviador Dantas. – Fez um pouso de emergência na selva, deu coordenadas exatas. É piloto experiente e saberá fazer sua parte. - Falou mais para o monumento louro que saiu da salinha, olhos vermelhos de chorar e que devia ser alguma coisa do piloto...
Os homens que vieram no helicóptero já estavam todos em terra e pior, desconectando fones e afrouxando os macacões. Mauro não se conteve e metralhou: - Quando é que os bonitões vão buscar meu amigo? Ele pode estar ferido, lutando contra o tempo...- Desafiou-os com o olhar.
- Senhores, a busca é uma operação visual, só pode ser feita à luz do dia e com tempo bom. Mesmo que decolássemos agora, só alcançaríamos o local do pouso já à noite. E tem ainda a meteorologia, que desaconselha a operação no momento. Vai chover à beça, durante a noite e parte da manhã de amanhã. Estaremos retidos aqui até termos condições de realizar a operação com sucesso. – Falava pausadamente, como se estivesse explicando o óbvio para um imbecil.
Os topógrafos se juntaram ao grupo informando que a carga havia sido lançada com sucesso. O pessoal da aeronáutica comemorou, preconizando um pouso de emergência menos crítico em função da inexistência de carga. Já passava das cinco, a chuva começou a cair. Primeiro alguns pingos grossos, mas ralos, só aqui e ali, depois foi ficando forte, até se tornar o aguaceiro a que todos já estavam acostumados. Entraram os salva-vidas e o homem da pista em sua surrada perua, e se mandaram para o hotel. Na salinha só estavam, agora, Astrid e Mauro, ela, muda e impassível, ele, nervoso, andando de lá pra cá.
- Vou avisar a família. Você vem? Vou ligar do bar do Plínio. – Ela nada falou, mas se levantou, respirou fundo e saiu em direção ao seu jipe.
O bar do Plínio estava com a mesma cara de sempre. Ele não:
-Ô Mauro, o André caiu? Me fala, chê!- Estava comovido e falava com dificuldade.
-Parece que sim, uai. Já tem até um helicóptero de buscas esperando o tempo melhorar... – O assunto era desagradável demais...
-Mas vão procurar ele aonde, barbaridade! Tinham que ir logo, esperar por que? – Plínio já tinha entendido, só não aceitava.
-Eles sabem exatamente onde ele caiu. Parece que ele comunicou as coordenadas do local ao controle de Vilhena. Ele já estava com o avião vazio, o que aumenta as chances. É piloto experiente, o avião é uma máquina muito boa, suas chances de sair dessa são grandes... – Precisava ouvir isso, mesmo que fosse de sua própria boca.
- Minha Santa Maria! – Plínio suspirou e amuou no canto do balcão.
- Me empresta o telefone, preciso avisar sua família em Goiânia. – Precisava manter-se ocupado, ficava mais fácil.
Plínio indicou a salinha do fundo, que era uma mistura de estoque, escritório e quarto de dormir. O telefone encardido ficava preso à parede. Mauro levou a mão à carteira, onde num cartão de visitas de uma auto-peças, André havia escrito os telefones de sua mãe e ex-mulher. Ainda se lembrava de André recomendando, rindo aquele sorriso maroto: - Mauro, só incomode o pessoal de casa se for coisa séria, de infarto para cima!- E agora lá estava ele, a mão tremendo, o cartãozinho puído quase lhe escapando. Justo agora! As coisas estavam começando a melhorar...
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