segunda-feira, 24 de maio de 2010

Capitulo 7


Hoje o dia seria cheio. E, afinal, poderia ser o dia em que as coisas começariam a melhorar. Seis e trinta. Banho rápido, roupa suja, café bem preto, na recepção do hotel. Montado na bicicleta, fiz força nos pedais, eu e ela gemendo, cheguei à pista com atraso de apenas dez minutos.

Não que o atraso me incomodasse. Sempre desleixado com horários, talvez tenha sido essa a primeira forma de irritar meu pai, doente pela impontualidade, que interpretava como forma de desrespeito. Para ele, deixar alguém no ponto era imperdoável. Eu, desde sempre, simplesmente não acordava. E daí?  Ninguém podia me fazer mal. Estava protegido pelo escudo invisível posto lá por meus pais.

Mas hoje, era diferente. Queria agradar até a meu pai. Por isso corri. Atrasei só um pouco e me dei por feliz. E olha que a noitada de ontem fora memorável...

Lá estavam o topógrafo e dois ajudantes. O pequeno pick-up, agachado sob os 600 e poucos quilos. Todos já suavam. Acenei rapidamente para eles e contornei o avião. Abri a porta de carga, que não tinha esse nome, eu quem pus. O Sêneca tem duas portas: uma à frente, à direita, dando acesso aos dois bancos de vante; e uma atrás, à esquerda, maior, dando acesso aos quatro passageiros  na porção anterior da cabine. É a essa última que rebatizei de porta de carga. Verifiquei a arrumação da tralha, que eu teria que lançar. Ajeitei um por um dos volumes, antecipando em ordem inversa o lançamento, ensaiando mentalmente o arremesso e colocando o volume na posição mais adequada à rapidez da operação. Peso distribuído, preparativos checados, fechei a porta e me adiantei para despedir de meus contratantes.

- Fiquem tranqüilos, a carga chegará bem ao seu destino. Voarei a 1200 pés de altitude, a uma velocidade média de 240 quilômetros por hora. Depois de decolar, estarei voando por duas horas e vinte minutos. É quando espero estar vendo o sinal de fumaça. Passe as últimas instruções pelo telefone. O lançamento é feito contra o vento, sobre a esteira de fumaça, a 150m de altitude. Estarei voando em círculos, no piloto automático, repetindo as coordenadas do primeiro lançamento. – Expliquei mais para mim mesmo do que para o atarantado topógrafo.

- Pode deixar Sr. André. O pessoal em terra está ansioso pelo sucesso de sua missão. - Disse o jovem técnico. Não pude deixar de rir. Me senti o legítimo herói na pele do astronauta partindo para descobrir novos mundos e trazer glória à espécie humana.

- Ok, até a volta então. São sete e dez. Estarei decolando às sete e trinta. Conte o tempo a partir daí que vai dar tudo certo. A perna da volta deve demorar pouco mais de duas horas. Se quiserem vir confirmar se deu tudo certo, é só vir até aqui ou me esperar no Hotel Concórdia.

Aqueles vinte minutos compreendiam os checks das empenagens, trem de pouso, drenagem dos tanques, checagem de instrumentos, inicialização de radar e VOR, bem como primeiros contatos de rádio com o controle de Vilhena. O acionamento de bombas, aviônicos e magnetos, bem como o contato final para início do táxi, eram feitos juntos com as últimas etapas de checagem. Às sete e trinta e seis já estava com a pista de terra desfraldada à frente do bico do meu avião, contra o sol já alto, vento de proa a 6 nós. Excelente!

Liberada a decolagem pelo controle Vilhena, confirmei rumo e destino e descansei o fone na coxa, apertei o cinto, fechei a portinhola de ventilação. Flaps a dez graus, motores a 2700 rpm, o pássaro nervoso quer voar. Solto os freios, olho na velocidade do vento, mantenho o que eu acho que é o meio da pista sob a barriga do avião, vento a 80 milhas, puxo delicadamente o manche e a vibração das rodas, em contato com o solo, desaparece. Estou no ar novamente. O prazer é quase sexual. Astrid, você podia estar aqui. Vendo o que seu apaixonado namorado de um dia sabe fazer tão bem. Vento a 120 milhas, 600 pés de altura, trem de pouso recolhido e travado, as bombas hidráulicas silenciam. Puxo os manetes até 2500 rpm, olho no altímetro e no horizonte artificial, sinto um ventinho de través, coisa fácil. Nivelo a 1200 pés e começo a assobiar.

Estar aqui em cima sozinho é quando gosto de me lembrar de minha mãe. Silenciosa, a falsa calma escondendo uma leoa, principalmente na defesa de seu único filhote. Sempre se arrependeu de ter tido apenas um filho. A pressão alta e o medo de novos abortos fizeram-na se acovardar. O apoio incondicional de meu pai na decisão de terem um só filho ajudou a superar a culpa. Fez de tudo para me ver feliz. Escola, roupas, passeios, festas, presentes, viagens, dedicação de tempo integral. Tudo conforme o figurino. Tudo sob o mais rígido controle, e aí a coisa pegava. Desde cedo o meu desconforto com aquela redoma era gritante. Aquilo me incomodava até estar aos gritos com ela, coitadinha...Aí ela chorava, eu me desculpava, ela me impunha o secular castigo, eu me dobrava mais uma vez e assim foi até meus hormônios começarem a pipocar pelo meu rosto, aos treze.

Morávamos em edifício de classe média alta, cercados de conforto e obrigações sociais. Das quais fugia como o diabo da cruz, a começar pelos sacramentos da Igreja Católica, fiz primeira-comunhão e crisma na marra, a reboque. Só o estoicismo de minha mãe para me arrastar àquelas intermináveis aulas de catequese, onde não queria estar nem amarrado. E eu, malandro como pulga de hotel, me escudava no fato de meu pai ser agnóstico. “O agnosticismo é a crença em Deus sem o concurso da religião e suas práticas dogmáticas”. E assim, sem entender bulhufas dessa misteriosa posição, adotei-a por servir melhor aos meus propósitos de ovelha desgarrada praticante. E tome patins,  patinetes,  bicicletas, pipas, matar passarinho, roubar manga nos vizinhos, carros de autorama, jogos,  violão,  e tudo o que eram moda entre os vizinhos do prédio e da redondeza. Escola, o mínimo para passar de ano, e passei em todos, miraculosamente. Meus Pais eram sempre chamados à escola. “O André é um menino ótimo, só que bastante levado”...

Quase dez da manhã. O vôo tranqüilo e sonolento me fez quase sonhar com Astrid. Teimava em admitir, mas estava louco por ela. E com saudades. Desligado o piloto automático, passei a checar coordenadas e fazer pequenas correções de rumo. Logo avistei o inicio de uma fogueira de folhas. Estava iniciando e logo percebi o exagero: devem ter ateado fogo a uma tonelada de folhas. O vento, que agora era de no máximo 5 nós de sudeste, me obrigou a uma longa volta para tomá-lo de proa. Na primeira passagem, marquei no GPS a coordenada de lançamento. Na segunda, piloto automático acionado, pulei para a traseira da cabine e iniciei a série de lançamentos. Percebi que o piloto automático estava funcionando mal, com dificuldades de manter o nivelamento, provavelmente por causa da proximidade com o solo. Isso me obrigou a ajustá-lo a cada passagem, o que me fez rebater o banco  do co-piloto e ficar pulando sobre ele a cada passada. A operação ficou demorada e cansativa. Ao tempo do último lançamento, já tinha batido a cabeça em vários locais da cabine, bem como joelhos e canelas. Estava suado e nervoso. Quando fui fechar a porta traseira, ela se recusava a se encaixar nos pinos guia, forcei o que podia e nada! Praguejei alto, voltei ao assento, dei motor e voltei a subir, procurando uma altitude em que o avião jogaria menos e fosse possível nivelar e aproar corretamente, usando então o piloto automático, que a estas alturas estava menos católico que eu.

Aeronave estabilizada, voltei à porta. Não havia meio dela se fechar, e se ela não travasse, o consumo de combustível maior me obrigaria a uma escala que imaginava nem ser possível. É nessa hora que gostaria de ter comigo um desses caras que acha que é só planejar que tudo acontece direitinho, ora bolas! Tentei mais um pouco fechar a porcaria da porta, em vão. Deitei a danada ao piso da cabine. Vou ter que encontrar um lugar para pousar No solo, esperava poder fechar a porta direito, nem que fosse a machado. Voltei ao cockpit, mapas na mão e... Não havia pista alguma por ali. Agora fodeu! Respirei fundo, régua de cálculo e compasso na mão, comecei a procurar mais longe.

Achei. Uma pista reportada como de retiro indígena. Podia estar sem condições de uso. Mas eu tinha que tentar. Fiz contato com aeronaves que porventura estivessem por perto, mas nada! O controle de Vilhena não sabia precisar a condição da pista. Podia ter sido inclusive dinamitada pela Polícia Federal no esforço de contenção da movimentação  de garimpeiros pela área, disseram. Bonito, e agora?

Já havia estado em situações complicadas antes. A primeira delas foi realmente de lascar. Assim que botei as mãos no sonhado brevê PP, de piloto privado, minha vontade imediata era de continuar a formação até o respeitado PC, de piloto comercial. Assim, por intermédio de amigos de meu pai, sempre ele, consegui um tipo de estágio em Táxis Aéreos de Goiânia. É comum, em vôos tranqüilos, curtos, com poucos passageiros, tempo bom, que não envolvam pernoite, pilotos mais experientes de táxi aéreo dar o lugar da direta para pilotos em formação. Assim, um de meus primeiros vôos de carona, o terceiro, para ser exato, seria num Cessna 140, já então com mais de trinta anos de uso. Avião pequeno, quatro lugares e motor de apenas 90hp, era o jipe dos ares. Seguro e confiável, além de econômico, é comum em escolas de aviação e táxi aéreos de todo o mundo. O vôo seria de Goiânia a uma fazenda no Mato Grosso, com escala técnica em Baliza, oeste do estado de Goiás. A carga, de medicamentos veterinários, era esperada com urgência e tivemos que nos aprontar rapidamente. O piloto, à época com mais de setenta anos era veterano da Segunda Guerra, tinha estado voando P-47 Thunderbolts na Itália e depois, ainda na Fab, Gloster Gladiators e  Douglas DC-3 no Correio Aéreo Nacional. Era um monumento à aviação. Mudara-se para Goiânia à época de sua aposentadoria e, além de instrutor na Escolinha, e palestrante requisitado, adorava fazer pequenos trabalhos com seu 140. O convite para acompanhá-lo foi uma grata surpresa e aceitei sem pestanejar.

Depois dos procedimentos iniciais, checks de rotina, táxi e decolagem, minha confiança naquele velho piloto era total. A idade não se demonstrava nos movimentos firmes e confiantes daquele ex-piloto de caça. O papo, agradável e sereno, era o de um avô passando experiências importantes ao neto ansioso. Além do Aeronca da escolinha e dois vôos de Sertanejo do Táxi Aéreo Goiás, nunca tinha voado em mais nada. No Sertanejo, o piloto, um carioca afetado, nem me deixou tocar no manche. Só servi para carregar malas e repor bebidas e salgadinhos para o casal de passageiros. Aliás, uma morena jovem de estonteante beleza e um comprador de gado de Ribeirão Preto, de mais de sessenta...

Agora era diferente. Assim que o avião se estabilizou, meu velho novo amigo já me passou os controles e se recostou, como quem diz: toma que a criança é sua. Banquei o manicaca até me acostumar com o avião, e tudo correu muito bem até o pouso em Baliza. A escala se destinava apenas a reabastecimento, feito manualmente com tambores e funis. Pedi ao velho piloto que assumisse a operação de descida, me sentia inseguro e ele entendeu com um sorriso largo encimado pelo bigode de pelos brancos amarelados pelo fumo. O Comandante,  ao vir para pouso, havia deixado o avião percorrer longo trecho sobre a parte mais do lado esquerdo da pista, cheia de mato, principalmente capim braquiária.

O pouso foi brusco, mas ele nada disse. Saiu do avião, pediu que assumisse a operação de abastecimento, me deu o dinheiro, balbuciou alguma coisa sobre dar uma caminhada, acendeu um cigarro e se afastou. Depois de uns bons quinze minutos, enrolado com mangueira, balde e funil, percebi o velho ás dobrado sobre os joelhos. Pulei de cima da escadinha, pois o tanque é acima da cabina, e corri ao seu encontro.

- O que foi, Comandante Félix? Está se sentindo mal? O que posso fazer pelo senhor? – Perguntei esbaforido e já sustentando seu corpanzil.
- Estou bem filho. Minha cabeça dói um pouco. Deve ser o sol. Me arranje um copo d’água que eu já melhoro de vez. – Falou sem a menor convicção.

Acompanhei meu companheiro de vôo até o avião, tomei da garrafa térmica a tampa com água fria pela metade e dei a ele, que sorveu tudo de um gole e já um minuto depois apresentava outro semblante, bem menos congestionado.

Insisti para que fôssemos ao hospital da cidade, pequeno, segundo o homem da gasolina, mas muito bem arrumadinho... Ele não quis, disse que já estava melhor e, depois, o piloto era eu. Orgulhoso com o elogio, tomei as rédeas da situação. Terminado o abastecimento, manobrei o avião, tomei o assento da esquerda, acomodei meu Comandante no banco ao lado, que afastei o máximo e posicionei na única posição de inclinação possível. Travei a porta e postei o Cessna na cabeceira da pista. Rotação a 2400 rpm, soltei os freios comecei a louca corrida serpenteante, característica de um avião com trem de pouso convencional.

Diferente de um avião triciclo, que tem três rodas de mesmo diâmetro, uma delas à frente, ligada ao manche e de fácil controle pelo piloto, o trem de pouso convencional consistia de duas rodas embaixo do banco do piloto e uma bequilha, pequena rodinha de menos de um palmo de diâmetro, embaixo da empenagem de leme, lá atrás. Assim, decolar era como dirigir um velocípede, esse mesmo, que todo mundo anda quando é criança, só que de ré! À trajetória bamboleante, somem-se os buracos da pista de terra e o nervosismo natural de um inexperiente piloto diante de um ícone sagrado, e tem-se um quadro que se deve evitar a todo custo. Quando a velocidade do vento chegou às 55 milhas, já aliviei o manche, o pássaro voou e, a 30 pés por minuto no climb, meu coração voltou a bater.

Lentamente, a situação se normalizou, aproei para as coordenadas da fazenda, nivelei a 900 pés, céu claro, vôo visual padrão e, comecei a escutar um descompasso no barulho do motor.

- Comandante, estou percebendo um rateio no motor. – Falei quase gaguejando.
- Só agora, meu filho? Percebi faz tempo... Pode ser sujeira no carburador. Puxe o manete de mistura, vamos ver se desentope... – Falou com segurança e fiquei mais tranqüilo.

Manobrei o manete, empobrecendo e enriquecendo a mistura ar/ combustível, na esperança de romper a obstrução. Nada. Acelerei e desacelerei o motor, também várias vezes. O motor já estava rateando de maneira séria, era possível perceber os trancos entre os tempos em que havia combustível na cela dos pistões, e quando ela explodia em seco. O Comandante, para piorar, já estava passando mal de novo, agora fazendo caretas e pressionando as têmporas. Disse com dificuldade:

- Filho, você vai ter que ser muito corajoso. Nosso pouso em Baliza com certeza fez a hélice jogar capim e terra na tomada de ar do carburador. O rateio é de falta de ar na mistura. Você vai climbar (to climb é o verbo em inglês para ascender, subir) a 3000 pés, e vai ter de mergulhar. A alta velocidade do mergulho deve limpar a tela da admissão. – Virou para o lado e desfaleceu.

Apavorado, sem olhar para o velho Félix, dei tudo no manete e, assim que a velocidade do vento aumentava, subia mais um pouco, e fui negociando vento por altura até 2.200 pés, altitude onde nunca tinha estado antes, quando o motor, num último suspiro rouco, deu seu último sinal de vida. Bem, o mergulho vai ser de 2.200, então. Meu sangue frio me gelou a fronte. Empurrei o manche, e vim a pique para o solo. O altímetro girava loucamente, 1800, 1700, 1400, a velocidade do vento só aumentando, 120,130,145 milhas por hora. O pequenino avião já tremia, o motor em sobre giro, a hélice cavitando. A seiscentos pés, a uma velocidade estonteante, que eu nem imaginava mais qual era, liguei os magnetos e dei duro no manche e nos pedais para nivelar. Assim que consegui nivelar percebi o ronco do motor, que havia pegado novamente, provavelmente porque aquele mergulho estúpido havia feito o ar arrancar o que obstruía a carburação. Sem pensar em mais nada, rumei de volta para Baliza, então a vinte minutos de distância. Pousei de qualquer jeito, taxiei levantando muita poeira e, quando parei o motor, tive então coragem de olhar para o lado. O Comandante Félix estava inconsciente, mas ainda respirava.

A camioneta carregada de capim que passou na beira da pista veio bem a calhar. Deitei o Comandante sobre o verde macio e implorei a carona até o hospital. Minutos depois, sobre a maca do pronto socorro, o jovem médico dizia que, mesmo antes dos exames preliminares, era possível prever o derrame, tecnicamente chamado acidente vascular cerebral. Em grandes altitudes, a pressão sanguínea tende, inclusive, a aumentar.

O Comandante, ao me orientar a subir mais ainda, havia piorado sua situação. A artéria que havia se rompido no seu cérebro, submetida a mais pressão vinda do coração, só piorou seu estado.

O trauma passou rápido, e a avaliação que fiz do meu comportamento me fez pensar que era um herói. O Comandante, com graves seqüelas do derrame, não voou mais e definhou até morrer dentro de um ano. Depois, percebi que coragem e atos de heroísmo quase sempre acontecem por acaso, ou sorte, no calor da hora. Você dificilmente consegue ser treinado para responder às emergências. Você deve se capacitar ao máximo e, na hora “h” ter o sangue frio necessário para deixar os instintos agirem. Naquela época, os ensinamentos de meu velho pai às vezes me faziam algum sentido.

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