segunda-feira, 24 de maio de 2010

Capítulo 14


Haveria um atalho entre o adolescente inábil e estúpido que fui e o aleijado lúcido que sou? É possível ter o entendimento que o viver dia a dia te proporciona, antes de viver as conseqüências da maioria das opções erradas que se faz? Máquina do tempo. Você vai lá, faz as besteiras todas, quebra a cabeça, entra na máquina, volta no tempo e aí sim,  faz tudo certo, gozando uma vida feliz e justa. Boa, só falta a máquina do tempo. Outra: você vive todas as burradas que tem direito, tira as lições óbvias, paga o congelamento de sua carcaça e reza para que daqui uns quinhentos anos eles ressuscitem sua múmia-picolé e te dêem uma nova vida para viver com suas fantásticas conclusões. Mais uma: você se esbalda de tanto errar, anota tudo, paga para fazerem um clone de você, espera até ele chegar na adolescência, passa um monte de raiva, porque ele não vai te ouvir, porque afinal é só mais um de você mesmo, mas você insiste até ele encher o saco e dizer que entendeu tudinho e te deixar morrer feliz, mas na dúvida.

A aranha foi embora, mais uma prova de que não sou nada. Ainda bem. É não sendo nada que agora eu me sinto tudo. Provavelmente não chegarei vivo até o próximo nascer do sol. A febre agora é constante, a respiração está mais difícil, já sinto cheiros desagradáveis que emanam do chassis que me trouxe nessa corrida maluca que foi minha vida. Vida que vivi pouco, sofri muito e fiz sofrer demais. Neste filme, queria ver deletadas algumas cenas.

Um ano e meio depois de estar voando meu próprio avião, então já devidamente pago ao meu Pai, sempre financiador de primeira hora, já tinha feito alguns amigos, a maioria pilotos como eu, na nova vida que estava tentando recomeçar longe das babaquices que fizeram a derrocada do yuppie drogado que virou mendigo. Já nessa época, percebia o mal que infligi aos meus pais, esposa e filhos ainda pequenos. Tudo que eu fazia, tentando reparar ou minimizar o mal que tinha feito, desembocava em novos sofrimentos e constrangimentos. Tentei voltar para Alice, desorganizei toda a vida de mulher separada que ela já havia conquistado. Acabei decepcionando ela de novo, sofrimento dobrado e perda de tempo. Percebi que ela só me deu nova chance por causa dos meninos, fiquei sentido e machucado, também. Meus pais demonstravam estar felizes com seu único filho de volta à casa, mas sabia que os incomodava estar dando tantas explicações desafinadas para parentes e vizinhos. Às vezes preferia simplesmente ficar alguns dias fora para evitar constrangimentos adicionais. Meu pai merecia ter tido aquele filho que se deixa programar para ser um homem de negócios padrão, que só lhe daria orgulho e satisfação, que poderia ser exibido aos amigos como troféu de competência e dedicação. Sempre soube que estava em falta com ele, porque frustrei suas tantas e tamanhas expectativas, privando-o do primogênito que continuaria seus negócios e perpetuaria suas idéias incríveis, mas às vezes abomináveis. Nem por isso deixou de me dedicar amor imenso, atenção onipresente e apoio incondicional. Insistia apenas em que eu devia continuar tentando ser feliz. E minha mãe, sofrendo duplamente com minha falta de rumo e a decepção de meu pai, ficava chorando e rezando baixinho pelos cantos da casa, como se merecesse aquele castigo. Assim, sendo bem-vindo, mas agradando mais quando estava fora, morava e não morava com meus pais. Estava sempre inventando uma estória para dormir fora, em casa de amigos ou simplesmente farreando.

Virei o playboy típico de cidade grande: tudo o que ganhava na aviação era gasto com aparência e lugares caros, sempre da moda, onde as mesmas caras de sempre se encontravam para celebrar vidinhas sem compromisso com esposas e filhos. Todos descasados e satisfeitos com o fato de estar podendo exibir os costados nos lugarzinhos da moda, onde estavam todos sempre contando de sucessos nos negócios e com mulheres. Cada estória mais fantástica do que a outra, afinal ninguém ia conferir. Amizades de bar serviam apenas para se jogar bazófias ao ar e, quase sempre, não valiam a rodela de papelão que aparava o copo de chope.

Seis anos se passaram e a lembrança do que aconteceu ainda incomoda. Num sábado à tarde, como qualquer um desses em que se fica à varanda do bar, exibindo músculos, marcas e ares, de vez em quando até a falsa loura que já rodou a mesa toda, estávamos a cambada toda gozando o coitado do garçom, de novo, quando chegou o Pedro Aleixo.

Há quatro anos não o via, mas sabia que era o cara que guarnecia de pó os traficantes da cidade. Era um dos sujeitos de quem eu corri quando dei no pé, fugindo do nó em que se embaraçavam cocaína, dinheiro emprestado, uísque, dívidas e noitadas cafajestes. Era o mesmo cara que me abraçava em público, me apresentando como amigo do peito e, no mesmo dia, mandava alguém me telefonar fazendo ameaças terríveis. Aliás, foi a notícia de que ele estivera preso é que me encorajara a voltar. Já tinha até quase me esquecido dele, pois nas mesas de bar, quando se tocava em seu nome, sempre havia o comentário de que comprara a transferência para um presídio mais complacente, fingido uma fuga e que tinha sumido de circulação, graças ao céu.

Ver ele ali plantado à minha frente, de braços abertos, sorrindo e pronunciando meu nome me deixou sem fôlego, arrepiado. Será que esse cara vai me abraçar, e se afastando, sacar de uma metralhadora e chacinar a todos ali, fazendo meus falsos amigos pagarem pelo crime de se exibir na mesma vitrine?

Levantei aparvalhado e recebi o anunciado abraço como se estivesse sendo agarrado por um morto-vivo que eu com certeza queria muito mais morto. Rindo alto, pronunciou algum tipo de piada e se voltou, cumprimentando aos outros, alguns até pelo nome, denunciando a pouca qualidade de meus comparsas de mesa de boteco. Ainda de pé, e assustado, já havia notado que ele ainda era o mesmo sujeito seboso, afetado, perfumado demais e bem vestido, com roupa de muito mau gosto. Anéis e pulseiras enormes, de ouro baixo, que eu me lembrava estarem sempre disponíveis para o suborno de um homem da lei. Convidado para se sentar por algum daqueles imbecis, ele não se fez de rogado, e se abancou do meu lado. Postou a mão sebosa em meu antebraço e monopolizou a conversa com bravatas de toda ordem. Parecia um reizinho narrando aventuras distantes para seus fiéis consortes. A situação, que já havia acendido todas as luzes de perigo na minha cabeça oca, me fez esperar apenas o momento propício para uma saída honrosa. Queria  apenas estar a quilômetros dali. Fiz menção de me levantar, balbuciei uma desculpa, e senti sua mão me prendendo o braço.

-Peraí, seu André. Vou precisar de carona, e vou para seu lado. Fica mais um pouco, a gente já vai. - Tinha vendido a alma para aquele bandido, ele tinha voltado do inferno para tomar pelo que pagou.

Medo. Detestava ter que admitir que sentia medo. A necessidade de aparentar a segurança de quem sempre sabe o que está fazendo, me fazia ver no medo apenas um defeito. Estava errado. O medo é sua inteligência trabalhando por sua preservação. Não aquele medo bobo, infundado, desinformado. Esse não, só atrapalha. Mas o medo de verdade, cabível e real, esse sim, só ajuda. É esse medo bom que urrava para eu sair dali a toda, mesmo correndo o risco de parecer um maricas para aqueles ninguém. Era o que devia ter feito. E não fiz. As conseqüências seriam terríveis.

Algumas gargalhadas hipócritas depois, meu algoz aliviou a pressão que fazia no meu braço, e se levantou, me forçando a fazer o mesmo. Disse que a conta da próxima seria nossa e, passando o braço grosso pelas minhas costas, me forçou à saída. Tentando manter as aparências, sempre elas, sorri e sinalizei que estava tudo bem. É tudo o que eles queriam: já pensou se eu tivesse pedido algum tipo de socorro em código? Não teriam, com certeza, movido um dedo, mas teriam sempre que admitir que mais uma vez foram covardes. E eu era exatamente só mais um deles.

Caminhamos rapidamente até meu carro, que não era meu, mas emprestado de minha mãe, que guiava quase nunca. Pedro Aleixo, o “Pedra”, traficante, proxeneta, assassino, chantagista, estava agora me seqüestrando.

- E aí, André, seu merdinha! – O elogio torto saiu meio bufo, enquanto se sentava ao meu lado. – Sabe o que é isso, meu chapa? – Tirou uma arma da virilha, depois de gemer com o incômodo. - É uma PT-380, com dezessete azeitonas que vão parar no seu rabo, se você mancar comigo. Se arranca com essa bosta e nem um pio!

Tarde de sábado de sol claro, poucas nuvens de algodão indiano, quatro da tarde. Às seis já estaria na caminha que mãe teria arrumado diligentemente, sabendo que dormiria até as onze, curando a ressaca do chope. Onze e meia, a noite ainda uma criança, estaria saindo para a caça às mariposas.

Mas hoje não. Hoje o diabo veio buscar minha alma. Engraçado esse sentimento de saber que isso aconteceria, mais cedo ou tarde, e quanto mais cedo melhor. – Toca pra pista da escolinha, não pára nem em sinal de trânsito. Se bobear morre. Seu avião já deve estar abastecido, só te esperando. Vamos dormir em Jataí e seguir para Corumbá, amanhã bem cedo. – O diabo ordenou, não faltava nem o fogo saindo pelas ventas. O mau hálito dele empestava a tudo. Reparou no pequeno terço de madeira que minha mãe sempre mantinha pendurado no retrovisor, e fez um muxoxo cínico. 

Precisava pensar em alguma coisa, rápido! De onde já estávamos, o pequeno aeroporto ainda estaria a uns dez quilômetros. Estava, a essas alturas, rezando por um carro ou moto de polícia, poderia até ir para cima de um deles para chamar a atenção. Mas nada! Polícia é funcionário público, estão a trabalho apenas nas horas claras dos dias úteis. Até a recreação, corridas e educação física, para eles, tem que ser em horário comercial.

Para meu azar, até o trânsito estava ralo. Não percebi nenhuma chance de mudar o rumo negro que a situação estava tomando. Na saída da cidade fui obrigado a parar num barzinho chulo, desses que nem piso tem, onde embarcou um negro suado usando brinco. Me deu um murro na nuca e gritou: - Anda logo, seu bosta!

O Pedra riu alto. Até o aeroporto foi contando ao negro, a quem ele chamava de “Nonha”, como tinha sido previsível e fácil meu seqüestro. Me chamou de otário duas ou três  vezes e, de vez em quando, dava tapinhas na minha coxa. Cara folgado e pegajoso!

Para aumentar meu azar, o sábado era de muito movimento naquele pequeno aeroporto. Era o dia em que o pessoal da aviação aero desportiva saía em raids pela região. Voavam até Aruanã, às margens do Rio Araguaia, ou aos grandes lagos no sul do estado, e ainda Goiás Velho, Pirenópolis e não sei mais onde. Às quatro e meia, muitos já estavam de volta, e ficavam por ali, enchendo as mesinhas do pequeno bar e loja de conveniência, aguardando os amigos que estariam voltando para a cervejinha do final do dia. Foi meu azar. Até o portão já estava aberto, o único funcionário do aeroclube  encarregado da tosca portaria, já o deixava aberto, em função do maior movimento. Só parei o carro diante do último hangar da fila, onde estava meu Cherokee.

À porta do avião estava o tíquete do abastecimento. Os tanques estavam cheios, o pagamento tinha sido feito em dinheiro. Pedra fez sinal para empurrarmos o avião para fora.
- Nonha, põe o carro no lugar do avião, dentro do hangar. É assim que esses babacas fazem sempre. – E me enfiou o cano da pistola por entre minhas costelas, me forçando a entrar no avião. Sentou-se no banco de trás e completou: - Se você banca o espertinho, vai morrer antes da hora!

Liguei o interruptor de corrente, dei vida elétrica ao painel. Magnetos, contato, o motor falou alto e sacudiu o pássaro. O negro fechou a porta do hangar, sepultando o carro de minha mãe. Mais uma, coitada! Fiz um táxi lento, esperando ter chamado ao menos um olhar, um par de olhos que visse minha cara de desespero e atinasse para alguma coisa. Nada, já estávamos no final da pista de táxi, preparando para aproar a pista, quando levei mecanicamente a mão aos botões do rádio. A norma era avisar à torre do Aeroporto Santa Genoveva, identificação, destino, horários previstos de chegada e retorno etc. Nem vi a coronha do trintaeoito batendo sobre meus dedos, só senti a dor lancinante. Gritei, dor e indignação pela agressão gratuita e traiçoeira. Perdi o controle do avião e só consegui frear quando já estava atravessado no fim da pista de táxi, já entrando no mato alto. A gargalhada do Pedra me fez sofrer mais ainda. Minha mão sangrava, o dedo anular estava num ângulo estranho, devia estar quebrado. O diabo parou de rir e falou: - Ô Nonha você implicou com o rapaz. É claro que ele não ia contatar a torre, ele sabe que se falar ao rádio vai tomar bala...Toma esse lenço, enrola o dedo para não emporcalhar nosso avião. – E riu mais.

Levei uns três minutos para me recompor. Puxei o dedo, urrei de dor, e, colocando-o junto com o indicador, enfaixei os dois com o lenço perfumado daquele passageiro pernóstico. Já estava cheio de ódio e só queria agora uma oportunidade para esganar aqueles dois.

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