Chegando ao hotel, ela estava lá. Alta, loura, belga. Astrid, da World Wild Foundation, engenheira florestal, trabalho voluntário. Mapeamento de queimadas na Amazônia. Já a havia encontrado três ou quatro vezes, no hotel, onde almoçava de vez em quando, e no seu hotel, onde a encontrei na recepção quando aguardava um cliente. Todas as ocasiões foram embaraçosas para mim, sempre pego desarmado por tanta beleza.
Ela, sempre alegre e linda, me dirigia sorrisos estonteantes. Como agora, e eu, como sempre embasbacado demais, me odiava por não ter adivinhado aquele encontro e dado um jeito naquela sandália de borracha que teimava em sair do tosco pacote danificado na aventura ciclística.
- André, você está bom? Voando muito? Muito quente? – Ficava mais linda falando mal o Português que, afinal de contas, nós mesmos não sabemos falar.
- Estou ótimo Astrid. Mais agora, te vendo alegre assim. O que foi, conseguiu conter mais um destruidor da natureza? – Achei que tanta alegria só pudesse ser porque tivesse salvado mais algumas árvores...
- Estamos sempre alerta. Salvar árvores é muito bom. Gratefull! Mas estou feliz por ver André. – Ouvi e não entendi, apesar de haver compreendido as palavras. Feliz por me ver?
- Você quer ajuda, precisa que te faça algo? – Achei que talvez pudesse ser útil àquela linda mulher.
- Gostaria jantar... dinner with me? Encontrar comigo? – Eu não acreditava no que estava ouvindo. – Hoje de noite.... tonight?
- Sim, claro é um prazer. Onde está o resto de sua equipe? – Perguntei por simplesmente não saber o dizer.
- Viajando de carro para aqui. Peguei carona em Hércules da FAB. Cheguei um dia antes... – Ela é tudo de bom, e com certeza esse sonho vai acabar logo, como todos os meus sonhos bons, ultimamente.
- Eu te pego no seu hotel. A que horas? – Nesse sonho eu também falava de um jeito esquisito...
- Oito e .... Eight thirty, ainda bem você entender inglês. See you! – E me beijou a face. Foi rápido, seus cabelos louros me roçaram a pele. Fiquei com medo de ter câimbras e cair no chão à sua frente. Ela se virou, o quadril largo e forte sob a calça larga de brim, estampa imitando folhas, elástico nas canelas, coturno alto, blusa cheia de bolsos. Esses estrangeiros acham que estão lutando uma guerra, esse aparato todo, jipes quatro-por-quatro, rádios de campanha, cintos de utilidades, sei lá.
Mas ela, não. Nossos raros e casuais encontros foram curtíssimos, falamos muito pouco, ela menos ainda, pelas dificuldades naturais da língua. Mas percebi que suas preocupações ecológicas estavam um pouco distantes daquele exagero normal ao pensamento dessas ONG’s. Percebi que sua atuação na preservação de matas se dava mais pela preocupação com o futuro das pessoas que aqui vivem e de suas necessidades extrativistas, do que o Protocolo de Kyoto, por exemplo.
Subi ao meu quarto. Atordoado pelo ataque de beleza e promessa. Um trapo de gente como eu pode interessar àquele anjo louro? Não. Então ela só quer companhia para o jantar. É isso. Serei só o cara que puxa a cadeira para ela se sentar e vigia sua senhoria da gana dos comuns. Sempre foi assim. Quando garoto, ainda antes dos vinte, percebi que nunca interessaria às mulheres que eu julgava interessantes. As da minha idade já queriam namorar para casar e só olhavam os caras de 25 ou mais. As meninas de 13 anos ainda estavam brincando de boneca. Ainda bem, porque de nada sabiam falar. Comecei, então a estar com mulheres que já aos 23,24 já haviam se decepcionado com um monte de namorados e estavam, por sua vez, querendo um frangote para ajudar a criar e poder controlar. Entrei no jogo, era bom poder estar aprendendo com moças mais experientes. E era bom relatar estas experiências aos amigos de mesma idade que ainda não tinham descoberto aquele filão. Mas, e essa agora? Será que Astrid tinha visto algo em mim? Será que eu estava mesmo entrando numa maré de sorte? “Amanhã pode ser o dia em que as coisas vão começar a melhorar...” Pode ser.
Tomei banho. Estreei a gilete. Estranhei o reflexo daquele rosto ainda bonito e agora sem a barba de dez dias. Achei calças limpas, a bagunça era tanta que até pequenos milagres desse tipo eram possíveis, passei a ferro a cueca lavada há pouco no chuveiro, reformei uma camisa. Reformar camisa suja é experiência antiga. Lavam-se o sovaco e o colarinho, pouca água e sabonete. Toalha em cima, passar o ferro bem quente. Pendurar num cabide, mais um pouco do vapor do chuveiro, secar mais um pouquinho ao ar e pronto. Vestido, parecia até gente. Fiquei satisfeito. Pus língua para a desalmada da lavadeira pentecostes.
Às oito já estava perambulando pelo pequeno saguão do meu hotel, fazendo hora. Pensei até que era para ter certeza de que pouco tempo antes, ali mesmo, na recepção daquele hotelzinho desestrelado, aquela valquíria, desfilando sua beleza loura entre aquele sofá de courvim barato e o balcão encardido, havia me convidado para jantar, eu acho. Acendi outro Marlboro e fiquei vendo a fumaça empestear tudo. Me comprometi a não fumar enquanto estivesse com ela. Palavra do escoteiro que não fui. Ela não fuma. Ainda bem. Alguma coisa estava me arrastando para fora daquele torpor filosófico ser-ou-não-ser. Parecia a voz de um ganso, se eles pudessem falar...
- Seu André – era o rapaz que atendia na recepção, filho de um dos donos – meu pai disse que o senhor precisa pagar as contas atrasadas ou vamos ter que tomar providências. – o rapaz tremia um pouco, suava além do normal. Era virgem nas artes do comércio. E no resto, com certeza...
- Rapaz, fique tranqüilo. Amanhã vou fazer um vôo que vai pagar bem. Depois de amanhã já devo ter o dinheiro para quitar boa parte do que devo a vocês. – Notei o semblante do rapaz ficar leve, cara de missão cumprida.
- Ainda bem, moço. Estamos apertados e temos que cobrar o que nos devem. O hotel precisa de reformas e as coisas estão difíceis. – Falou quase pedindo desculpas. Eram gente trabalhadora, o errado aqui era só eu.
Quase oito e meia, atravessei a rua até o hotel de Astrid. Ela estava de cabelo solto, vestido de algodão, sandália de couro cru, sem salto, colar indígena de sementes e ossinhos brancos. Uma ambientalista perfeita. E bela!
- Que bom você veio! – Como se fosse possível um vivente digno de ser macho dar o bolo numa deusa loura daquela. – Queria comer churr... barbecue, you know? Estou com fome grande...
- Churrasco, Astrid. E você está linda. Vou te levar à nova churrascaria ao lado do posto de gasolina. Fica meio longe, você quer andar ou quer pegar um táxi? – Me lembrei do pouco dinheiro que ainda tinha, a lavadeira quadrangular vai ficar para depois...
- Vamos andar. Faz tempo não passeio. Gosto de você, foi bom sair com você. Noite bonita.
A vida me prega dessas peças! Um mulherão desses, lindamente vestida e perfumada, dizendo que gosta de mim e eu, sem saber se ela está falando isso porque é realmente o quer dizer, ou apenas não sabe dizer outra coisa. Êta vida...
A churrascaria, como toda churrascaria de beira de estrada, é um horror. Toalhas de plástico quadriculado, mesas e cadeiras de madeira dura e cheia de quinas, um buffet de saladas reformadas do almoço (me lembrei da camisa) onde também estão pratos e talheres. Você passa por ali, se serve dos pratos frios, vai para a mesa dura, e lá vem a enxurrada de carnes nos espetos, gaúchos suados e facas enormes. Os pratos quentes, são os já batidos arroz, feijão, polenta e banana fritas, que vieram em seguida. Mais espetos. E caminhoneiros barulhentos. E calor. O televisor engordurado vomitando notícias. O plástico da mesa se levantava toda vez que eu erguia os braços, pregado no suor inconveniente. Tudo armado para mais um fracasso.
Minha valquíria pouco falou. Comeu à beça, explicando que só havia engolido bolachas naqueles dois dias. Comeu mais, elogiava a tudo, e comia mais. Só depois que percebi sua satisfação com a comida é que comecei a ter esperanças de reverter o anunciado desastre. E saboreei a comida. Boas carnes, bem assadas, cortadas apenas poucos minutos depois de saírem do competente braseiro, arroz soltinho quase goiano, a polenta e a banana sequinhas, realmente tudo muito saboroso e adequado. Relaxei. Pedimos sorvete e já estávamos totalmente alegres, desencanados e rindo de tudo.
Ela devia ter 31,32 no máximo. Olhos verdes muito claros. Busto pequeno, e alta, um e setenta e poucos, no mínimo. Deixou a Bélgica aos dezenove anos, nasceu numa cidadezinha próxima ao grande porto fluvial da Antuérpia, cresceu falando francês e flamenco. As florestas da Bélgica, Alemanha e França a instigaram a estudar Engenharia Florestal. No Canadá. É lá que se encontra a melhor graduação possível nessa área. E foi lá que aprendeu o inglês que permeia seu português raquítico. Logo descobrimos que meu inglês era melhor que seu português, e então o papo fluiu. Depois do sorvete falamos de política, filosofia, ecologia e, pasmem, aviação. Seus olhos brilharam ao convidá-la para caminhar os três quilômetros que separavam o engordurado plástico quadriculado, sob nossos cotovelos, do meu companheiro de alumínio e níquel.
A lua escandalosamente clara deixava o rubor de minhas faces parecer um borrão de ruge barato. E ela fazendo que não percebia. Eu estava em pânico. Temia deixar transparecer os momentos difíceis que estava passando, e afugentá-la. Tê-la perto de mim era muito bom. Queria que aquele passeio desse a volta ao mundo, não acabasse nunca. Já nem me lembrava do meu papo fácil em cinema e literatura, do que falei sem parar. Falei de minhas viagens, estudos, filhos, e até, quem diria, planos para o futuro. Ela fingiu maravilhosamente estar interessada e orgulhosa de minhas posições. Me fez sentir o bom moço que, até parece, fui um dia. Puxou-me para debaixo de uma marquise e me beijou a boca seca.
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