segunda-feira, 24 de maio de 2010

Capítulo 12


É preciso morrer para se saber viver. É por isso que as coisas são como estão. Não vivemos nossos epitáfios. Sabemos desde sempre o que temos que fazer para viver melhor. Mas não colocamos nada em prática. Acho que temos predileção pelo sofrimento, masoquismo puro, não se explica diferente. Acho...

Se a melhor solução é a mais simples, por que se complica tudo? Por que tanta firula filosófica, tanta busca do dispensável, tanta preocupação com o desimportante, se ao final o bom que se tira da vida se resume à simplicidade de ser? De onde tiramos essa de que para nós o vivido por outros não nos serve de nada? Insistimos na bobagem de achar que somos diferentes e melhores do que todo o resto.

Meu casamento podia não ser aqueles de contos de fadas do tipo “e viveram felizes para sempre”, aliás isso é só em novela, mas era uma união estável, sempre amei minha família e perdi muito deixando que tudo caísse por terra. O desgaste com Alice se deu, em princípio, por minha vaidade exacerbada pelo sucesso profissional. Mudaram o meu jeito de vestir, de falar ao telefone, minha rotina em casa. Vieram depois as noitadas com os executivos da matriz, as festinhas endiabradas  regadas a uísque e cocaína. A partir daí, mais nada estava sob controle. E a pergunta que sempre me veio, já depois de tudo perdido: será que aquilo tudo foi mesmo necessário? Será que levar o sócio a uma boate e enchê-lo de uísque melhorou meu desempenho profissional? Fechei melhores negócios só porque banquei o machão destemido? E será que meu companheiro de farra só me acompanhou para que eu não achasse que ele não queria fazer negócios comigo? E se no fundo, em vez de uma noite de esbórnia ele preferisse simplesmente descansar no hotel e ficou sem jeito de dizer? Hoje penso que sacrifiquei minha família talvez forçando outros a fazerem o mesmo. Burrice.

As biografias de gente famosa e importante estão cheias de depoimentos dos biografados enaltecendo momentos de calma, convivência com esposas e filhos, pescarias, sair na chuva, cultivar um jardim, passeios no bosque e andar descalço, e isso tem uma lógica imensa. O que realmente importa é o que vai faltar no balanço de sua vida. Você pode sentir falta dos momentos que não passou com os filhos, mas jamais da dose de uísque que deixou de beber. Por que essas coisas ficam tão claras quando o tempo não quer mais te dar a imerecida prorrogação?

Quantas vezes eu poderia ter saído na chuva, mas, em favor de convenções que para nada servem, preferi não fazê-lo? A chuva no rosto, a sensação preciosa de ser só mais um ser vivo nessa fantástica criação...

Chuva no rosto. Anoiteceu e está chovendo. Acho que dormi, já é noite alta. Onze, meia-noite? Queria saber, mas para quê? Estou com dores horríveis no pescoço apesar de, de vez em quando,  fazer com ele todo o movimento que essa situação me permite. Me distraí uns minutos bebendo água da chuva, que delícia, ela trouxe mais sabores da mata acima. Os raros relâmpagos projetam as sombras de meu túmulo verde. Continuo sem sentir as pernas e, dos braços, percebo apenas uma leve sensação de peso. Ainda sob a claridade do entardecer já tinha notado que não tinha acesso a qualquer dos botões do painel, muito menos daquele que ligava a corrente principal. Mas era quase certeza que mesmo que eu conseguisse acioná-lo, nada aconteceria. As baterias ou seus cabos certamente estariam danificados demais.

Quase nada poderia fazer pelo meu aguardado salvamento, além de torcer. Ou rezar, mas isso eu não aprendi. As operações de busca, se o tempo estivesse bom, se iniciariam logo às seis da manhã, e seguiriam um roteiro já previsto. Os sobrevôos em torno das coordenadas  que eu passei, primeiro mais alto, e depois rasantes seguindo faixas traçadas sobre um mapa.

Tudo dependeria do avistamento de destroços. E eu não tinha idéia de quantos pedaços da minha ex-belezinha riscada de azul haviam ficado na copa das árvores. Comecei a ter dúvidas do sucesso daquela operação da qual dependeria o resto de minha vida. E como eu queria viver! Voltar para meus trapos, voltar a ter sonhos, sentar novamente no banquinho duro e sem graça daquela pracinha e simplesmente dizer aos meus filhos apenas o quanto os amava, evitando os embaraços com os quais os torturava. Rever Astrid. Será que ela ainda estaria lá? E, se der tudo certo, que tanto de mim estaria voltando?

Não tinha jeito. Meus pensamentos me forçaram a entender o porque daquela paralisia. Tudo me levava a crer que o acidente teria partido minha medula espinhal. Não queria pensar nisso agora, estava sendo bom comemorar o fato extraordinário de apenas estar vivo, mas toda a parte matemática de meu cérebro gritava por minha atenção, era inevitável pensar que eu poderia estar irremediavelmente aleijado. Minha vida poderia não ser mais a mesma. Não que gostasse da minha vida como ela era, cheia de opções erradas que desembocaram numa existência decrépita que não orgulharia ninguém. O que me assustava agora é que sempre me faltou a consciência de que minha vida complicada podia ficar ainda pior. Se, gozando da saúde que eu me permitia, fumando, bebendo e me cuidando pouco, as coisas já estavam sendo difíceis, imaginava se, jogado numa cadeira de rodas, o quanto tudo estaria pior.

Adeus, Plínio. O seu conhaque não me seria dado jamais, muito menos de canudinho. Adeus, Mauro. O seguro do avião poderia me assegurar uma existência pouco além do miserável, mas nunca voltaria a voar seus contratos. Logo, seriam para outros as piadas com sotaque caipira. Adeus Astrid. Te amo demais para vê-la pajeando um aleijado. Você precisa lutar por suas árvores, por sua felicidade, eu não quero atrapalhar.

Vai sobrar para minha mãe. Fui um estorvo para a vida tranqüila que ela fez por merecer. Eu era sempre o furacão, que sem hora nem aviso, botava sua vida de pernas para o ar. E foi sempre por mim que ela sofreu, sempre sem se queixar, paciência de claustro, inesgotável. E eu nem me dei conta. Fazê-la sofrer era só mais um dos inconvenientes contornáveis das minhas loucuras. E é para ela que vão voltar os restos do que foi minha vida sem graça e desperdiçada. Sempre ela. Pelo menos o destino poupará meu pai desse desfecho miserável. Morreria de vergonha diante de seu olhar generoso. O que fiz do amor e da atenção que me dispensaram não tem desculpas.

E agora, mesmo reconhecendo minha incompetência como o pai que poderia ter sido e não fui, enxergo o amor imenso e gratuito que sempre tive dos meus velhos. Amor incondicional. É o amor que sinto pelos meus filhos, que nunca terão disponível o colo quente do pai que eu não soube ser. O colo quente de meu pai sempre esteve lá, mas minha cegueira me impediu de desfrutá-lo. O que me tirou a visão de fatos tão claros? Por que me deixei cegar pelo cotidiano hipócrita que cavamos para nossa existência? Se burrice doesse...

Estava agora me vendo tentando viver a vida impossível de um deficiente físico. A culpa de ser um peso morto para uma mãe que já merecia estar gozando de uma velhice tranqüila e confortável. A culpa de estar colocando transeuntes ocupados com suas próprias vidas na obrigação de estar fazendo força para fazer a cadeira de rodas transpor um meio-fio sempre alto ou mais um obstáculo na calçada nunca pensada para o portador de deficiência física. Ser um coitadinho. Ouvir um elogio se engolir a papinha sem babar a metade no colo. Não sei, pensar nisso está sendo um horror.

Acho que o deficiente tem que pensar que é só um pouco mais deficiente que os outros. Ninguém é eficiente em tudo. É o contrário. O normal é sermos deficientes em quase tudo. Entender o deficiente, não como um coitado, mas como alguém que é apenas mais deficiente em um ou outro aspecto físico ou mental, no meio da massa enorme das deficiências que todos já temos, seria mais fácil e lógico. Acho obscena a necessidade de provarmos nossas qualidades em embates públicos. Pura medição de força. E desnecessária. A competição, desde as brincadeiras na escola, para se medir sempre quem é mais forte ou corre mais, nos torna contendores vorazes em disputas vãs e inúteis. A competição passa a correr em nosso sangue. Não só queremos estar ganhando sempre, queremos que nosso time vença sempre, dando eco à necessidade de sermos melhores e rápidos, de estar sempre do lado que vence, provar que somos os melhores exemplares de uma raça que só faz merecer por ser extinta...

O fraco é aquele que precisa provar para si e aos outros que é um forte. É fraco o jovem que mata ou morre nas brigas de torcida que existem para provar que este time de futebol é melhor do que aquele outro. É fraca a mulher que acha que a roupa de griffe, comprada num esforço imenso do marido culpado, vai fazê-la admirada pelas outras socialites, que só estão lá para falar das feias, obviamente se achando lindas. É fraco o empregado que se elogia para um patrão que já sabe que bom é o empregado que apenas faz o trabalho e pronto. É fraco aquele que se curva à vaidade de estar sempre provando que é rico, bonito, forte, esperto.

Por mim seriam abolidos quaisquer tipos de competição, pois ela mina a autoconfiança dos que precisam se sentir parte de alguma agremiação. A humanidade, sabendo, como sempre, usar mal a inteligência apurada nas últimas centenas de milhares de anos, criou o sistema burro de dar valor só ao vencedor. Ninguém se lembra dos medalhistas de prata e bronze das Olimpíadas, porque os holofotes estão reservados apenas aos meninos de ouro. Ao resto dos finalistas só resta explicar, aos poucos que perguntam, porque o ouro não foi possível e blá, blá, blá. É sempre assim, a prática da competição, esportiva ou outra qualquer, é uma fábrica de frustrações e desilusões. Não existem medalhas de ouro para todos. O normal e lógico é que a grande maioria esteja sempre perdendo, mesmo. Então, para que a necessidade de competir? Os meninos são levados a necessitar de saber que seu bairro é melhor, sua cidade, escola, estado, raça ou nação, e para que? Ora, como não existem tantos troféus a serem conquistados, fica a maioria se achando parte de algo que não presta, só porque se deu mal na última medição de pirocas. Essa necessidade doentia de medir forças, provar definitivamente quem é o melhor, faz nossas crianças fazerem das muitas derrotas que enfrentarão em suas vidas, o obstáculo que vai justificar a preguiça e desinteresse na busca de valores e sonhos próprios.

Estar vivo e merecendo, sei lá porque, esta última das milhões de segundas chances que a vida me deu, e que eu desperdicei quase todas, me faz ter a certeza que viver vale a pena. E sem competir, vá à merda o sujeito que precisa de saber que é o melhor em alguma prova boba. Provar o quê, para quem? Aleijado, preto, pobre, eu seria feliz de qualquer jeito. Agora eu sei, a deficiência não pode ser física, racial ou financeira. É fraca a pessoa que toma isso como baliza e é fraca a sociedade baseada no preconceito. E só é forte o vivente que entende, sem medo ou pieguice, com quais ferramentas pode ou não contar na busca de ser feliz. Se agora, depois de resgatado de mais esse buraco sem fundo, eu estiver inválido para voar, para andar ou trabalhar, o simples fato de estar vivo e curado da cegueira em que estava até agora, vai me fazer um cara produtivo e atuante. Só continua me incomodando o negócio de ser, inevitavelmente, um estorvo e uma preocupação para alguém, talvez a minha mãezinha, que nunca me ouviu chamá-la de mãezinha... Estou com frio e puto de não ter sabido agradecer quem me ofereceu calor e carinho. Puxa como tudo teria sido diferente... 

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