Instintos, cadê vocês? Será que essa pista que devo avistar em alguns minutos ainda existe? Está em condições de receber um bimotor? Será que vou conseguir encaixar a porta para seguir de volta? Ah, Astrid, você vale cada minuto de esforço para ir a seu encontro...
Lá estava ela. A clareira na mata era o primeiro sinal. Mas, a pista já estava mergulhada em capim e mato rasteiro. Acho que já pousei em piores. Só estou achando um pouco curta. Vamos lá, fiz a aproximação de praxe e vim para pouso, flaps ao máximo, o motor só beliscando, pousei. A desaceleração foi violenta, temi pelos desgastados pneus. Gelei: a pista estava com uma camada de areia fina e solta que devia ter quase um palmo! Aquilo ia ser pepino na certa. Deixei o avião correr até o final da curtíssima pista, e já manobrei para ficar em posição de táxi. Desliguei, respirei fundo e gritei para ninguém: merda!
Voltei à parte traseira da cabine, ajoelhei diante da porta e comecei a tentar entender o porque dela não querer fechar... Simplesmente, porque ela já estava fechada! Todos os ferrolhos estavam na posição “lock”. Por algum motivo, depois de retirá-la para proceder ao lançamento da carga dos topógrafos, devo tê-la trancado. Se burrice doesse, eu deveria viver aos gritos! Na fogueira de tentar colocá-la à força, ainda em vôo, acabei danificando o mecanismo, que agora estava irremediavelmente pifado. Talvez, se eu tivesse as ferramentas para desmontar a porta, e principalmente o tempo, vá lá. Mas, já quase uma da tarde, numa pista abandonada e que ainda me daria o que fazer para decolar, nem pensar. Acho que devo decolar e, sabendo que o combustível não era mais o suficiente para chegar a Pimenta Bueno, procurar pouso seguro e fazer uma escala para reabastecer.
Levei o avião até o finalzinho da pista e, usando os motores para manter o rumo, porque a bequilha estava atolada, minha manobra levantando uma nuvem inacreditável de areia branca, virei para a pequenina pista. Percebi que seria uma sorte enorme decolar com sucesso. Mesmo em condições normais, a pista era muito curta, feita provavelmente para os pequenos J-3 dos indigenistas de mais de trinta anos atrás. Foi a areia acumulada durante aqueles anos que tinha tornado estéril a superfície do solo, o que manteve a clareira aberta. Tinha sido um erro pousar ali! Com o passo das hélices ao máximo, potência à toda, soltei os freios. Senti que o avanço era constante, mas penoso. Os pneus estavam sub-calibrados em função do muito desgaste. Pensei em abortar, mas o ponteiro de velocidade do vento deu sinal de vida. Manche na ponta dos dedos, o avião correu um pouco mais com a menor resistência da areia. Não vai dar, pensei, mas imaginei já ter ultrapassado o ponto sem volta.
As árvores altas ao final da pista já estavam enormes. A velocidade do vento já estava chegando às 75 milhas necessárias para a decolagem. Vai dar. Puxei com tudo, achei até que ia bater nas árvores, quando não via mais folhas e galhos à minha frente, pensei: estou escape! Mais uma vez!
A pancada foi seca, mas muda. Preocupei-me com o trem de pouso, que poderia ter recebido o choque. Mas não, ele se recolheu naturalmente e a pressão do sistema hidráulico estava normal. Chequei a pressão do óleo dos motores, a pressão na linha de combustível, tudo estava normal, descansei. Trimei (neologismo aeronáutico para o uso do trim tab) o avião, tudo bem. Eu sou o máximo, escapei de mais uma! Agora era calcular, com uma folga de segurança, a autonomia, levando-se em conta a porta aberta que aumentava, e muito, o arrasto e, portanto, o consumo de gasolina, escolher uma pista segura, pousar e conseguir o combustível para voltar. Só isso.
No Brasil, chamamos de aviação geral essa atividade que usa pequenas aeronaves particulares. Normalmente, engloba empresários e fazendeiros que pilotam seus próprios aviões para tocar seus negócios, pilotos de seus próprios aviões que se prestam a serviços de terceiros, como eu, e pilotos empregados de companhias de táxi aéreos ou de proprietários não pilotos. As aeronaves em geral têm mais de 20 anos, a maioria fabricada nos Estados Unidos pela Beechcraft, Cessna, Piper e Mooney. Os motores, também americanos, normalmente Continental e Lycoming, podem ser carburados, injetados e até turbinados. Esta belezinha que estou voando foi feita no Brasil pela Embraer, sob licença da Piper. Hoje é a Neiva quem detém os direitos de fabricação daquela marca. Tudo muito bonito, mas pega nas péssimas condições de operação. Com exceção de grandes centros, a manutenção é sempre deficitária e cara. Mão de obra escassa e mal-treinada é lugar comum. O triste da história é que é sempre nos mais remotos rincões do país é que os aviões são mais necessários. É exatamente lá que eles voam muito e estão mais distantes dos cuidados necessários. O Departamento de Aviação Civil tem estatísticas horrendas sobre o teor de fatalidades por número de horas voadas, principalmente em áreas garimpeiras e madeireiras. Pilotos e aeronaves têm sido os heróis na conquista desse Brasil imenso. Romântico e piegas, não deixa de ser verdade. E foi o que me atraiu à profissão. Aventura, desafio, respeito dos comuns, namoradas, dinheiro, ver lugares sempre novos... Como se tudo fosse cor de rosa.
Voltei a pensar em Astrid. Aqueles contra-tempos estavam me distanciando da hora em que estaria com ela. Aliás, já está passando da hora em que deveria estar de volta e ela já pode estar ficando preocupada. É bom estar sendo esperado. Nos faz pensar que pertencemos a um lugar.
Meu pai, que parecia saber sobre tudo que falava, dizia que os vikings, que estiveram navegando e conquistando terras em todo o Atlântico Norte por mais de dois mil anos, enfrentando todo tipo de mar bravio, fazendo guerras quase sempre em inferioridade numérica, tinham a força de suas mulheres sempre com eles e, por isso, sempre voltavam aos seus portos de origem. Diferentes dos romanos da mesma época, de cujo império os cidadãos raramente conheceram a capital, a diáfana Roma.
A vontade, mais que necessidade, de estar de volta são e salvo me surpreendeu. Muitas vezes me vi pensando que voltar para lugar nenhum era quase tão ruim quanto não voltar. Cheguei, em algumas ocasiões de forte depressão, a quase desistir dessa vida sem sentido, deixando que o avião fosse de encontro ao nada e me levasse junto, com o nada que já me habitava.
Tinha chegado o momento de voltar o consumo de combustível para o tanque direito. Aviões de asa baixa, como este, têm seus tanques de combustível dispostos nas asas, um à esquerda e outro à direita, claro. Cento e quarenta litros cada um, duzentos e oitenta litros no total, a quarenta litros por hora de consumo médio, seis horas e meia de autonomia mais um tantinho de reserva técnica. Durante o vôo, o combustível deve ser gasto ora de um, ora de outro tanque, para evitar que o avião fique penso para o lado do tanque mais cheio. Assim, de tempos em tempos, aciona-se uma chave comutadora que fica no centro do console entre os bancos.
Pelas minhas contas, além dos vinte e cinco litros ainda no tanque esquerdo, eu ainda tinha uns cinqüenta litros no tanque direito, o que dava com folga para alcançar a pequena pista de fazenda, nos limites do parque, escolhida para a escala. Toda fazenda tem combustível armazenado, e eu só precisaria de mais uns sessenta litros para chegar a Pimenta.
Virei a torneira para o ponto neutro, esperei acabar o combustível da linha, os motores silenciaram, e virei a chave para a direita, esperando os motores pegarem com o combustível já do tanque direito. E nada! O que houve? A luz espia indica que a bomba está em ordem. O marcador de volume está... vazio! Meu Deus, o tanque direito está seco! A pancada. Só pode ter sido isso. O tanque pode ter se rompido e deitado fora meu precioso combustível.
Estava perdendo altura, precisava reagir à situação. Voltei para o tanque esquerdo, os motores roncaram, voltei a subir e, climb em 100 pés por minuto, fui a 1400 pés. Preciso pensar.
Tenho trinta e cinco, quarenta minutos de autonomia, no máximo. Preciso pousar nesse tempo, senão estou frito! O mapa não indica nenhuma pista dentro da reserva. Estrada, clareira, fazenda, nada. Pode ser que haja algum lugar para pousar que não esteja catalogado. Pode ser. Vou manter o curso para a já inalcançável fazenda onde faria a escala e ver se dou sorte...
- Papa Tango Victor Oscar November. Mayday. – A coisa estava ficando preta!
Acionei o controle de Vilhena, relatei a situação, rota, posição, e fiquei escutando o operador tentar contatar outras aeronaves na região. Nada. Também não souberam informar nada além da carta aeronáutica já em minhas mãos. Esperar. Mais nada a fazer. Trinta e cinco minutos, se tanto. Não mais estava chocado ou nervoso, apenas atento. Com os olhos perdidos naquela imensidão de selva logo abaixo, pensei pela primeira vez que poderia morrer...
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