segunda-feira, 24 de maio de 2010

Capitulo 25


Alice olhava para o céu plúmbeo. As crianças ainda dormiam, de maneira estranha ao habitual, aquela era uma das primeiras vezes que estavam fora de casa. A notícia do desaparecimento de André já ia fazer vinte e quatro horas. A tarde caminhava para seu ocaso molhado. A chuva já tinha empurrado o resgate para amanhã. O turbilhão de pensamentos não dava descanso, mil perguntas diferentes perguntavam a mesma coisa: o que deu errado?

Ajeitou as crianças na cama e, sem barulho, saiu do quarto e desceu até a recepção. Perguntou ao homem como faria para ir até o quarto de André, no hotel do outro lado da rua. O homem, solícito, telefonou ao dono do outro hotel, explicou tudo, escutou por mais um pouco, desligou e lhe acenou com a cabeça. Alice atravessou a rua e se dirigiu aos escombros da vida do homem que adorava. A chave já estava na mão do rapaz no balcão torto, subiu em silêncio e se postou diante da porta. Esperou por um longo momento e entrou. Teve que acender a luz. A desordem era enorme. André vivia aqui como se, a qualquer momento, ele pudesse ser salvo dessa vida cheia de mazelas e infortúnios. Quando a hora chegasse, talvez preferisse sair apenas com a roupa do corpo. Nada ali merecia ser levado para a nova vida para a qual ela não o tinha trazido. Sentou-se na cama, empurrando um pouco dos panos amarfanhados, e chorou muito, era quase raiva. Tudo teria sido mais fácil se os egos não fossem tão grandes. Lentamente se arrastou até a minúscula janela, que tinha um vidro quebrado. Fitou as nuvens de um forte cinza chumbo. 

Porque um casamento totalmente comum, entre pessoas absolutamente comuns, vivendo a vida que todos vivem, não daria certo? As  cortinas chumbo para as quais fitava se abriram para o segundo ato, e a única resposta plausível se acendeu no fundo daquele palco que eram nossas vidas: o fato de sermos comuns nos levam a tentar ser diferentes, num círculo pernicioso de querer ser algo desejável para quem não nos interessa. A vaidade de estar fazendo um eterno jogo de cena.

Esse labirinto escorregadio nos faz perder a mão de quem amamos, cada um se perde por corredores diferentes, e então percebe-se que só é possível que a gente se comunique aos gritos. Entender algo tão evidente fez lágrimas de frustração se juntarem às de desespero. E, aos gritos, ninguém se entende mais. Alice ainda arrumou forças para reconhecer que, aos gritos, tudo se deteriorou, e as tentativas de reatamento nada mais foram que novas sessões de mais gritaria. Estava claro que não podia ter funcionado.

Agora vai ser diferente. Assim que seu marido desembarcasse daquele helicóptero, ia ser beijado pela mulher que precisou quase perdê-lo para perceber o quanto o amava; pela mulher que agora sabia que havia um milhão de maneiras de manter sua família unida e feliz. É a ela que cabe papel tão importante, e saberia como fazê-lo.

Estava exausta, mas feliz. O entendimento de como seria o futuro próximo encheu seu semblante de alegria e esperança. Arrumou o que pôde daquela bagunça, esticou lençóis e toalhas, fazendo daquilo a terapia de que tanto precisava naquele momento. Se pudesse, nem deixaria André voltar ali. Fechou a porta, desceu a escada às escuras, devolveu a chave ao homem de olhos arregalados, pisou na rua enlameada e voltou ao seu pedaço de vida naquele fim de mundo.

Tomou um banho rápido, as crianças já estariam acordando, teria que fazê-las comer um pouco. Ainda incomodava a idéia de esconder o acidente da mãe de André, mas, o que fazer? Aos setenta anos, era uma mulher saudável e equilibrada, pelo menos parecia assim, apesar de que no passado tinha se deixado cair em negras fases de depressão. A maioria em conseqüência dos desatinos de André. Mas a distância e as incertezas poderiam trazer complicações. Resolveu que aguardaria os acontecimentos de amanhã, e aí então escolheria um modo de como avisá-la do acidente.

Tinha certeza que André estaria aliviado com sua presença, que a deixaria assumir os preparativos para sua recuperação. E ela estava louca pela oportunidade de cuidar do único homem que amou. Lembrou-se que, para instigar ciúmes, chegou a insinuar, de mentira, claro, para o ex-marido, que estaria saindo com alguém. Aliás, já tinha tentado todas as más idéias possíveis para tê-lo de volta. Agora seria diferente.

- Mãe, e o papai, já buscaram ele? – Bruno perguntou antes de abrir os olhos. Estava abatido, mas de certa forma revigorado. Tinha se tornado um homem forte. Alice se apavorava com a idéia de que talvez ele agora poderia ser o homem da casa...

-Meu filho, as buscas só poderão ser iniciadas amanhã. A meteorologia garantiu que amanhã cedinho o sol vai brilhar. E aí aquele helicóptero vai buscar o papai. – Precisava continuar tratando aquele homenzarrão como o menino que era até ontem.

- Mãe, e se o papai morrer? Eu podia ter sido legal com ele, quando ele me chamava para aquelas conversas... Eu ficava sem graça, não sabia o que dizer, e só agora percebo que mais do que dizer, eu tinha era que ouvir, e só. Queria dizer pra ele que me lembro de tudo o que disse. – O homenzarrão agora estava aos prantos – Ainda bem que na sua última visita, no Natal, eu lhe dei um abraço forte e sussurrei que o amava. Preciso acreditar que ele me ouviu. Devia ter dito mais alto, olhando em seus olhos. – Bruno amava o pai e o tinha como herói.

Alice agradeceu a Deus ter tido forças para manter em alta, para os filhos, a imagem do pai. Ao custo de chorar de portas fechadas e praguejar mil vezes sem emitir um único som.


Camilla acordou e levantou o torso, sentando-se na beirada da cama. Observara o diálogo até o final e começou a chorar. Os soluços sacudiam seus ombros delicados, os cabelos longos e desalinhados grudavam na pele molhada de lágrimas. Alice esperou um pouco para abraçá-la, sem saber o que dizer. Um dos erros que cometera foi não aprender a mentir para os filhos. E nessas horas eles precisam demais de uma mentira, que eles sabem que é, mas precisam acreditar nela. Acabou chorando junto, o medo engasgado teimava em ficar. Assim que conseguiu falar, Camilla falou de seu sonho. Alice nunca mais esqueceria o que ouviu da filha.

- Mamãe, sonhei que estava dançando o Quebra-Nozes. O teatro estava cheio, todos aqueles vultos na penumbra, me fitando. Senti que papai me olhava. Sabia que era ele, só não sabia de onde vinha o seu olhar. Quanto mais procurava, mais sentia sua presença e menos sabia de onde ele me fitava. Eu já tinha me perdido nos passos, quando ele me chamou: Camilla! Ele precisava de mim, e eu não sabia como alcançá-lo. Só consegui ver seu rosto quando fechei os olhos. Aí sim. Nada mais via, só seu rosto, ele estava cansado, mas mais lindo que nunca. Disse que me amava e me deixou passar a mão pelo seu rosto... – Camilla caiu no choro. Alice e Bruno também. Estava claro que aquela experiência os marcaria para sempre. 

Os três ficaram abraçados por um tempo. O convite para o jantar foi recebido com apatia, mas aceito. Desceram ao restaurante do hotel, jantaram e,  às nove da noite, saíram para a rua. A chuva havia parado, largas porções de céu estrelado já eram visíveis. O clima melhorou entre eles. Insistiam em fazer planos para a volta do pai para casa. O assunto distraiu Alice, que se deixou levar pelas deliciosas conjecturas. Às onze, estavam de volta para esperar o dia seguinte.

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