segunda-feira, 24 de maio de 2010

Capítulo 13


Frio, molhado, não dormi. Acho que apenas perdi a consciência algumas vezes. Estive o tempo todo tentando estar lúcido, e esse esforço me esgotou totalmente. Lutei com as forças que me restavam para estar consciente a cada minuto, amarrado à vida, vivo. Quando acordava dos momentos de quase coma, era tomado por uma fúria da qual jamais me sentira capaz. E me concentrava mais, sabendo que, se bobeasse no esforço de estar atado à vida, eu apagaria de novo.

Quem te viu, quem te vê. Inúmeras foram as vezes que estive pagando caro para estar apagado. Cocaína, uísque, conhaque, anfetaminas, viajei em todas as classes e para todos os lugares. Pagar caro para estar desligado da única coisa realmente cara para todos nós, a vida! Tomara que descubram algum outro planeta com vida inteligente, porque, aqui na terra, inteligência já é algo extinto, como dinossauros e ararinhas azuis. Não entendo, agora, como pude cair nessa, e não entendo tanta gente caindo no mesmo buraco. E pior, informação é o que não falta! E alguém me diga em qual situação é melhor estar tonto do que lúcido?

Lucidez. Essa coisa até agora obscura, às vezes até escura, mesmo, se revelou apenas luz. Daí o nome. É claro. E que delícia estar com tudo às claras, envolto nessa luz tranqüila que abre todas as portas e te coloca no lugar que construiu para si. Paralítico neste esquife de alumínio, sepultado neste túmulo verde de beleza incompreendida, essa luz me inunda de coragem, entendimento e tranqüilidade.

Agora entendo  que estar moído nas ferragens desse avião, neste exato pedacinho de mata, foi apenas o cume da montanha de acontecimentos fora de controle que se tornou minha vida. Não estou aqui pelo azar de uma porta que não se fechou, pelos pneus quase murchos, ou pela infelicidade que fez a ponta de galho estripar o tanque de gasolina, ao fim daquela pista que nem pista era mais. Estou aqui por ter me deixado, quase sempre, levar por egoísmo e vaidade. Só e apenas isso. A necessidade de parecer mais e melhor que meus iguais me colocou aqui. Vivo e consciente o bastante para assistir a esse espetáculo de luz que me lembra os fogos de artifício. Fogos hoje muito comuns e quase sempre queimando dinheiro público desviado para campanhas milionárias de politiquinhos, mas que maravilhava a todos à minha volta. Cheguei até a perdoar alguns daqueles malandros que a tudo comemoravam com foguetes e os fogos, porque estes traziam aos mortais comuns a sensação de estar ouvindo e vendo estrelas.

E agora, nessa overdose incrível de lucidez, o filme da minha vida ganha cores que nunca sonhei, amores que desdenhei, carinhos que desentendi, amigos aos quais falhei. E eu, espectador espantado e maravilhado, choro. Choro comovido pelo entendimento dos erros, choro arrependido de não ter vivido a vida fantástica que me foi oferecida, choro embasbacado pelas belezas que me beijaram a face e não percebi, choro por ter estado surdo às pessoas que me amaram, choro por ter amado estando armado, choro por ter decepcionado quem eu poderia ter feito feliz sem o menor esforço. Choro porque agora vejo que tudo que faltou estava à minha mão.

Lágrimas enferrujadas e poucas, mas que vão ajudar a chuva na tarefa fantástica de fazer brotar as sementes deitadas ao solo. Soluços que sacodem meus pulmões, que tratei tão mal pela vida toda, e me sacodem junto, me acordando para querer viver, mais e melhor do que nunca, viver e celebrar a vida, para sempre!

Lágrimas que vieram purgar esse sentimento de não poder, de não ser preciso, de que “tá bom do jeito que tá”.

Agora que, se tiver sorte, vou estar preso a uma cadeira de rodas, preciso andar pelo mundo todo, e eu já tenho a energia para isso, consertar os estragos, colar os cacos, remendar as feridas que causei e tudo o mais que o trator ignorante que eu era passou por cima.

Meu relógio biológico me diz que já é de manhã. Mau sinal. Chove e ainda está muito escuro. Se realmente já amanheceu, o salvamento não virá, pelo menos por agora. Estou tranqüilo, apesar do desconforto e das dores incríveis no pescoço, mas estou preocupado com as pessoas que serão afetadas pela má noticia que causei. Primeiro, a tarefa terrível de achar e dar notícias aos parentes. Já devem ter arrombado meu muquifo azedo, encontrado agendas e referência de quem avisar. Histórias desencontradas já estavam fazendo estrago, a essa hora. Quantos agora estariam verdadeiramente preocupados comigo? Os credores, com certeza. Cobrar de quem? O Mauro, que já teria voltado de Cacoal talvez até feliz com a professorinha, e eu estragando o romance. O Plínio pode até ter esquecido a abstemia renitente e tomado um trago em favor do amigo praticamente defunto. E Astrid? Estaria triste, talvez pensando no que daria se o aviador sorumbático voltasse aos seus braços, talvez até já se sentindo perdida neste lindo País, de novo. E Alice, como reagiria à notícia de meu acidente? Quantas vezes ouvi dela o amargo “Ta vendo, não te disse?”. E meus filhos? Tremi de pensar que talvez o sentimento que mais se faria notar neles seria o de alívio. Eu era o tipo de pai que é melhor estar morto ou desaparecido, porque assim faz menos estragos.

Minha mãe. Ah, mãezinha, se faz quinze horas que deveria ter voltado, provavelmente o telefone já tocou com aquele barulho de tragédia e sua vida de rotina ordeira já está de pernas para o ar. De novo. Sinto muito, mas eu era assim e é para você mãezinha, a quem quero mostrar, primeiro, o novo André que essa quase morte pariu. Preciso ter a chance de botar o olhar nos seus olhos verde-escuros e te fazer entender que não mais te farei infeliz. Só um olhar. Mãe é isso, é para quem esse montão de coisas podem ser ditas só com um olhar. Queria acreditar num paraíso celeste, aquele mesmo, que tanto tentou me fazer acreditar, só para vê-la entrando nele, quando chegasse sua hora. Aliás, vou passar a acreditar nele, porque mãe é o tipo de bichinho que merece vida eterna, e no céu. No ar.

Estou sentindo um ardor atrás dos olhos. Primeiro sinal de febre. Algum processo infeccioso já está avançando, talvez por algum dos pedaços de meu corpo que já não sinto mais. Talvez pernas e braços estejam quebrados. Ou mal irrigados de sangue e já estejam em processo de necrose. Muita coisa pode estar acontecendo no corpo que não é mais meu. Muita coisa está acontecendo na cabeça que agora é mais minha do que nunca. Estou maravilhado com esse surto de lucidez. O entendimento gratuito da simplicidade escondida, mas sempre presente, nas complicações em que me meti.

Todas as opções erradas, por serem as mais complexas, egoístas e vaidosas, foram feitas sempre na presença de uma alternativa mais simples, meio escondida, mas sempre lá. Só que eu não a via. Parece que a opção errada é sempre a mais óbvia, mas não é. A opção errada é a mais cômoda, a mais fácil, a que está semi-resolvida. Mas não é. Na verdade ela é a mais covarde, porque dispensa a consulta à consciência, aos princípios e referências que nos são passados gratuitamente durante nossas vidas pelas poucas pessoas que se importam verdadeiramente conosco. Que são as mesmas a quem dispensamos nosso primeiro desprezo.

A opção certa é a mais óbvia e simples, mas obriga à reflexão que não queremos. Nos obriga ao entendimento de que tudo que fazemos vai estar num encontro de contas. E você precisa estar todo quebrado num acidente aéreo para entender que este encontro de contas não é exigência de ninguém, até porque as pessoas que te amam de verdade nada exigem, mas de você mesmo, no encontro inexorável com seu Deus de verdade e clareza. E esse balanço vai acontecer, cedo ou tarde. Tomara que aconteça a vocês num momento em que a segunda chance daquela hora esteja menos difícil que esta minha, neste momento. Quantas segundas chances apareceram de forma mais tranqüila e fácil, e eu, idiota demais, desperdicei. A vida é tão boa até por causa disso, ela está o tempo todo te dando novas oportunidades. Mas a pior cegueira é a daquele que não quer ver.

Então você pode mudar o rumo das coisas no momento que desejar. É claro. Qualquer hora é hora. Brinquei sempre com a frase “amanhã é o dia em que as coisas vão começar a melhorar”. Amanhã está muito longe, é preciso fazer o próximo segundo ser aquele em que as coisas vão melhorar. E só depende de você. Pode até ser mais fácil condicionar a solução para seus problemas à próxima reunião no Ministério, ou à fala do Presidente, mas pensa bem, tem cabimento, se tudo que te falta já está a seu alcance? Ou alguém quer estar aqui arrebentado no meu lugar para ver esse óbvio gritante?

Já devem ser duas da tarde. Já faz vinte e quatro horas que eu devia ter pousado em Pimenta Bueno, beijado Astrid, saboreado as frutas frescas que ela prometeu levar ao piquenique na beira do riacho. Ou não. Várias foram as boas chances que tive de me tornar uma pessoa mais feliz. Desperdicei todas, e Astrid poderia ser só mais uma delas... A não ser que quem pousasse de volta fosse a outra pessoa que sou agora, mas como?

O dia esteve chuvoso e nublado, com certeza as buscas só se iniciariam se o tempo melhorasse, mas quando seria isso? A tarde já ia pelo meio, a chuva havia parado, mas o céu estava ainda muito escuro. Esse foi um dia em que a vida na mata não existiu. Incrível a diferença com a mesma hora de ontem, em que o céu estava claro e limpo, e a quietude da mata estava plena de vida, cheia de quase barulhos de insetos, árvores, sapos e sei lá mais o quê. Agora o tempo feio tinha entocado os viventes desse paraíso verde. Depois que parou de chover pensei ter ouvido discreto bater de asas, provavelmente de um pássaro pequeno. Meu pedacinho de céu está quase tomado por arvores muito altas. O que consigo ver, da esdrúxula posição que o acaso me colocou, se resume a um retângulo de meio por meio metro, tomado em sua lateral direita por muitos dos cacos que eram o pára-brisa do avião, e por onde choveu a água batismal que me fez nascer de novo. Para além dos cacos, dois troncos grossos, e muito verde lá em cima. Por entre as folhas, um pouquinho de céu, agora de puro chumbo.

Foi então que ela veio. Oito pernas e um tórax-barriga do tamanho de uma ervilha. Uma aranha, pendurada em uma linha de teia brilhante, pendia pelo buraco da janela e descia em minha direção. Já estava a um palmo de meu rosto quando parou para me fitar. Pisquei os olhos com vigor incomum, tentando avisá-la do perigo que eu representava, dando uma última oportunidade para que ela sobrevivesse, afinal ela já devia saber que num embate com um humano, nem aranhas muito maiores do que aquela bostinha ali, teriam a menor chance. Ela rodou para a direita e desceu mais alguns centímetros. Já conseguia ver as discretas listras esverdeadas em suas costas. Ela me fitou de novo. O que foi? Nunca viu um cara numa situação difícil? Vai querer rir de mim? Ela encolheu as perninhas finas e ficou imóvel. E agora, ela vai descer até meu olho esquerdo, ou vai embora, o que vai ser? Nada. Nem mais um movimento. Mas será que ela vai ficar parada aí, sem fazer nada? Porque não me ataca, ou foge? A expectativa me agitou. E lá estava outra lição só visível para o novo homem que eu era. A natureza é assim, nenhum animal se planta na soberba de achar que sua existência faz diferença para outro. Viva e deixe viver. É assim até para a presa que entende que uma hora vai servir de jantar para outro vivente. Me coma, mas não me encha o saco! E tem que ser assim mesmo. É só mesmo nossa petulante especiezinha que vive no afã de causar frissom até quando vai ao supermercado, falem bem ou mal, mas falem de mim! A minha nova amiga aranha, só desceu ali para tirar uma soneca, se tanto. Que mania a gente tem de achar que qualquer aproximação visa provocar um embate de vida ou morte. É aquela necessidade boba da competição. Se eu, ao invés de um piloto estatelado esperando um milagre que não tem hora para acontecer, fosse um quitute de aranha, ela provavelmente desceria os quatro centímetros que faltavam, me comeria, e pronto! E, se fosse o contrário, ela com certeza já estaria pronta para ser comida, desde que o fizessem sem muita firula. Os outros entes da natureza já sabem que tem um papel a cumprir, ninguém quer mudar o script e bagunçar tudo, para isso tem aqueles macacos pelados, que se acham o máximo e só sabem meter os pés pelas mãos.

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