segunda-feira, 24 de maio de 2010

Capítulo 11


Vou cair. Chegou a minha vez. Engraçado como você aceita a morte de outras pessoas sem pensar na sua própria. Em algum momento alguém te convence que as coisas só acontecem aos outros, você, por ser único e perfeito está imune a essa desagradável sina de reles mortal. A mídia te ensina a não se satisfazer com nada que seja inferior ao que está sendo anunciado. Te fazem pensar que o melhor é o mínimo que você merece da vida. Que você é demais, e único. Só não te ensinam como pagar a conta.

- Papa Tango Victor Oscar November. Mayday. Coordenadas de pouso forçado. Oeste Sessenta Trinta , Sul Onze Trinta.- Minha voz ecoou pela cabine e me assustou. Nada de resposta. Estática. Só faltava essa! – Controle Vilhena, copiou? – Mais estática.
- Victor Oscar November. Controle Sivam. Estamos com você.- A voz era de menino, mas firme. – Rumo dois meia oito, meia zero três zero, e uno uno três zero. – Um relâmpago me lembrou da polêmica de vários anos que antecedeu a instalação do Serviço de Vigilância da Amazônia. Escândalos e somas indecentes quase puseram tudo a perder. E hoje esse menino atrás do alto-falante pode ser a diferença na minha vida.

-Vou cair. Pane seca. Copiou, Sivam?- Esquisito. Será que vou acordar desse sonho cheio de diálogos desses filmetes de aventura?
- Positivo, Oscar November. Coordenadas confirmadas. Já acionamos o Controle de Busca e Salvamento. Boa Sorte. – O menino se despediu do condenado.

Aproei o vento, que era de 15 nós, nivelei a 1200 pés e fiquei esperando o primeiro sinal de linha seca. Era fácil: a bomba, quando rodava em seco,  fazia um ruído diferente. Daí por diante, sem pressão na linha, os pistões queimavam o pouco que a aspiração natural do motor puxava e fim de papo! Fim de tudo.

Quando os motores parassem, e eu tinha que ter certeza de haver o mínimo possível de gasolina nos tanques, por isso tinha que esperar até o fim. No mínimo, haveria menos combustível para explodir, ou pior me queimar. Cruz credo, que situação!

O rateio dos motores começou. Ora um, ora o outro. Dez segundos. Calaram de vez. Agora era estar pronto para a manobra ensaiada tantas vezes e sempre temida. Neste último mergulho, com flaps à toda, tentaria embarrigar as árvores mais altas. Nos últimos segundos daquele vôo suicida, eu puxaria o manche até o talo, diminuindo ao máximo a velocidade, e oferecendo a maior quantidade de superfície da barriga do avião para o choque inevitável. Numa razão de cinco metros voados para um em direção ao solo, minha sorte estava lançada.

Engraçado ter pensado neste vôo como suicida. De jeito nenhum! Estou fazendo tudo para viver! Confesso agora que além da tentativa frustrada pelo mijo do caminhoneiro naquele barranco de estrada,  essa foi sempre uma alternativa quase atraente. Mas não é assim não: é pura babaquice esse negócio de “se as coisas não se arranjarem eu acabo com tudo”. E depois, ainda tem essa coisa da coragem, que com certeza vai faltar na hora “h”. A vida é dádiva preciosíssima, vale a pena ser vivida até o último minuto, e é o que estou fazendo agora. Ainda voaria uns dois minutos. A calma que tomou conta de mim era impressionante. Só o pouco barulho do vento, passando pela empenagem do pássaro, que agora fazia seu último vôo.

Estive evitando, agora não consigo mais afastá-los do pensamento. Meus filhos, Bruno e Camilla. Que saudade! Como teria sido bom ter vivido mais pertinho de vocês. Que pena que a auto-suficiência moral e material de sua mãe me tenha feito ser apenas aquele cara que já vai tarde. Que quase nada tem pra dar e faz aquele monte de perguntas sem graça.  Que aparece num ou outro domingo, estragando os programas no clube com os amigos, forçando vocês a um passeio esdrúxulo pela pracinha do bairro onde moram, até porque não havia outro lugar, querendo conversas de profundidade duvidosa e esperando ouvir confidências, para se sentir menos estranho, àqueles filhos que não tiveram pai... Que pai maravilhoso eu tive e que porcaria de pai sou eu....Que falta fazem agora as lembranças, dos bons momentos que tivemos juntos. Momentos com meus filhos, momentos com meu pai. Faltaram as lembranças ou faltaram os momentos? É difícil dizer. É difícil fechar esse balancete onde os números são sempre negativos. É essa parte da minha vida que eu quero reformar, se tivesse mais uma chance. A vida é uma sucessão interminável de segundas chances, elas vêm e vão, a todo momento. O lado ruim é que uma delas será a última, sem te avisar quando.

O ar que entrava pela porta aberta já trazia o odor da selva. Cheiro fresco e acolhedor, quase tão bom quanto estar no ar. Desliguei os magnetos, bombas e a corrente principal. O que menos queria agora eram faíscas do sistema elétrico, sabe-se lá que tanto do explosivo combustível ainda tem nos tanques vazios. Baixei os flaps ao máximo, melhorando a sustentação na baixa velocidade em que já estava. O alarme de stol já gritara há um tempo, agora estava desligado, só fazia barulho no meu sub-consciente, e senti, finalmente, que era a hora. Puxei o manche, o avião gemeu e, nariz para cima, perdeu velocidade rapidamente. Pareceu um avião de acrobacias, que sobe, corta motor, nariz para cima até começar a cair, desgovernado, aí pega velocidade, retoma o vôo e corre pro abraço. Só que o Sêneca chapou de lado e começou a bater nos primeiros galhos.

Agora tudo acontecia em câmara lenta. Primeiro, o choque com a asa esquerda que dela arrancou a ponta e destruiu a hélice, que se partiu num estalido alto de aço se rompendo. A segunda pancada, provavelmente um galho mais grosso, pegou a cabine raspando e se descarregou na porção de asa direita entre ela e o motor direito, direto na parte mais sólida da asa, onde a longarina  era mais forte. O giro foi alucinante. O avião rodopiou terrivelmente e o terceiro choque aconteceu, noutra  árvore, só que dessa vez me atingindo em cheio. A parte da frente da cabina, o painel e o plexiglass se fecharam sobre mim. Senti que o avião já estava quase parando, mas tinha muito ainda para cair. E caiu, desprendendo-se da copa das árvores, retido suavemente pelos cipós e folhagens, rumando o bico para o centro da terra.

Silencio novamente. A queda, rica em barulho, ruídos e estalos de todos os tipos, havia cessado. Os animais que haviam se assustado já voltavam à rotina. Não havia fumaça, não havia fogo, não havia nada. Só eu ainda me encontrava lá. Lúcido, sem dor. Sentia cheiro de sangue, combustível e lubrificante. Via o painel e o manche, que agora fazia um desenho engraçado, a meio palmo de meu nariz. Sentia o cheiro fresco da madeira machucada pelo choque de meu pobre amigo desgovernado contra aquela muralha verde.

Vivo. Pouca gente se dá conta de estar vivo. Quando era vestibulando, pegava ônibus para o cursinho e ficava me perguntando se aquelas cinqüenta pessoas apertadas naquela lata, cada uma com sua história, cada uma com seus problemas, em algum momento de suas vidas quase sempre miseráveis se davam conta de estarem vivas e, se estavam realmente vivas, por que não começavam uma revolução? Onde está a vida que me prometem na constituição desse país? Mas, está na cara que não são revolucionários, são gado. E gado não vive, pasta.

Estar vivo merece uma celebração a cada minuto. Aqueles cheiros, aqueles raios de sol filtrados pela densa floresta, aqueles barulhos úmidos,  a minha língua inchando entre os cacos dos meus dentes, eram sinal de vida! Eu estava vivo!

Comecei a tentar olhar em volta, mexendo só os olhos. Estava tudo muito fora de lugar. Vi um dos meus pés fazendo um ângulo impossível, ele parecia querer saltar sozinho para fora do avião. Tentei mexê-lo, não consegui. Vamos pela ordem. Antes de tentar entender o que meu pé fazia quase saindo pela janela de acrílico quebrado, precisava me entender com partes mais vitais. Parecia que o resto de meu corpo estava prensado sob o painel, só não sentia como. Meu Deus! Não estou sentindo nenhum pedaço de meu corpo abaixo do pescoço. Vértebra quebrada, só pode ser, estou irremediavelmente aleijado! E vou morrer aqui, desse jeito. Eu não posso morrer agora, se o mais difícil já passou! Preciso me manter vivo e esfriar a cabeça para pensar.

A situação é ruim, tenho que reconhecer. Mas preciso entender o quanto está ruim. O painel à minha frente está apagado, rádio e aviônicos todos desligados. Se tivesse como religar o sistema, talvez pudesse fazer funcionar rádio, transponder, localizador. Bom isso eu tento depois. Se ao menos conseguisse me mexer, melhorar minha posição...

Precisava me concentrar no ambiente, me situar melhor, tentar facilitar meu resgate. Já deveria ter voltado há quase duas horas, com certeza as pessoas em terra já estariam preocupadas. Com certeza contatariam os controles de Vilhena, Porto Velho e o Sivam. E saberiam dos avisos de mayday e da deflagração e planejamento inicial das operações de busca. Astrid. Como a vida gosta de imitar folhetins baratos. Venho morrer nesse fim de mundo, menos de vinte e quatro horas depois de achar o que poderia ser o amor de minha vida.

Esfriar a cabeça. A busca de aeronaves acidentadas só se dá sob a luz do sol. Já deveriam ser mais de quatro da tarde. O sol se poria às seis e quarenta e cinco. Os primeiros vôos de reconhecimento, partindo de Porto Velho ou Vilhena, talvez até Cuiabá, não estariam sobre minhas coordenadas antes de três horas depois de sua suposta decolagem. Já fiquei para amanhã. Sem problemas, preciso mesmo de um tempo para me organizar.

Organização era a palavra de ordem de minha mãe. Tudo tinha o seu lugar, minuciosamente determinado numa lógica só sua. Depois de descasado, morando novamente com meus pais, é que  percebi o tanto que essa mania era forte em sua rotina. Não sei se ela gostava mais de dar a bronca no coitado que deixou uma coisinha largada ou do ato de devolver aquela preciosidade ao seu legítimo lugarzinho pré-determinado. Divertia-me o ar condescendente de meu pai, sempre armado de um argumento para defender sua amada. Via ele às vezes até ajudando naquela intricada arrumação. Alice também tinha um pouco disso, acompanhada, lógico, da reclamação padrão de que, se pudesse escolher, não teria vindo ao mundo para sofrer tanto. Me veio à memória os quilos de roupa suja e azeda amontoados sobre a cama para a qual não voltaria hoje. Até daquele catre bagunçado já estava sentindo saudades.

Precisava entender mais a situação em que me encontrava. Sem achismos. As palavras “eu acho” sempre precedem o que você não deveria dizer, ou pensar mais antes de fazê-lo. O estado de coisas ao meu redor, inclusive eu, merecia uma análise tranqüila, era a melhor coisa para empregar meu tempo até o resgate estar aqui. Estava claro, até agora, que o acidente havia partido minha coluna vertebral, a medula estava comprometida e isso explicava o fato de não sentir braços e pernas. Sentia agora a pressão das ferragens sobre meu tórax, mas conseguia respirar aos poucos. Conseguia mover a cabeça, mas muito pouco, não o suficiente para tentar ver o que tinha havido com meus braços e pernas. Tentei elevar o olhar por cima do painel, pelo acrílico quebrado por onde já entravam os últimos raios de sol daquele dia que, afinal de contas, não foi o dia em que as coisas começaram a melhorar. Mas, agora via tudo com clareza, podia ser amanhã e todo esforço valeria a pena para conferir.

A floresta já tinha se refeito do susto. Tudo já estava como deve ser, quieto, mas cheio de sinais de vida. Quase não se via para além da copa das árvores, mas as nuvens estavam lá. Ia chover.

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