Mauro se proibia de pensar que o amigo poderia estar morto. Sentia que André era a âncora que o barco desgovernado de sua vida achou para estar hoje em águas mais tranqüilas. As conversas com o amigo eram a referência necessária para atravessar a corda bamba até o próximo nascer do sol. Adorava pegá-lo num momento de fraqueza, ou mesmo bêbado. Era quando podia se sentir o irmão mais velho, o chefe de família, o amigo que pouco soube ser às pessoas a quem abandonou naquela longínqua e próspera Uberaba...
Devia ter dito isso a ele, mas pareceu tão piegas, preferiu calar. Devia ter dito a ele o quanto sua amizade lhe era cara. O humor ácido, o senso crítico, o entendimento amplo e simples de coisas que lhe eram complicadas... O alívio em toda aquela culpa que o consumia. As vezes em que o levou para voar, para estar no ar...
Mauro se dirigiu ao pequeno banheiro do restaurante, fechou a porta, deu descarga no vaso e chorou alto, o som abafado pela descarga de emoção e autocomiseração. Pensou pela primeira vez que agora tudo estava, como sempre esteve, nas mãos daquele Deus que lhe tinha abandonado. Não era isso, ele sabia, precisava se achar com Deus, se redimir das merdas que fez. Deus esteve sempre lá, era ele quem tinha virado as costas. Olhou para o espelho e prometeu voltar a Uberaba, tentar reencontrar quem já tinha sido sua família.
Resolveu fazer isso agora. Seu amigo não voltaria mais para ele. Sabia, pela esperança que viu nos olhos de sua mulher e filhos, que ele, se escapasse dessa, nunca mais estaria em Pimenta. E nem eu, pensou. Que me desculpe a professorinha, meu lugar é remendando os cacos de quem fui, reatando meus laços e vínculos. Levantou o rosto e fitou, no espelho emoldurado de fórmica barata, o jovem cansado que estava lá, esperando. Voltarei para Uberaba hoje!
Agora seu choro era franco, forte, sem preocupações com os ouvidos do resto do mundo. Ele agora sabia que poderia cultivar as lembranças do amigo que voava querendo alcançar o ar, recontar suas histórias, repassar suas experiências e ensinamentos duramente conquistados. Ele agora ia ser o amigo que André merecia ter tido...
Plínio ouviu o choro do amigo no banheiro. Ficou embaraçado, pensando se mais alguém estaria ouvindo. Mas, afinal quem se importa? Hoje era um dia em que muitas coisas estavam acontecendo. O ar estava carregado de uma eletricidade viva, gostosa, coisas boas estavam acontecendo. O mundo estava ficando melhor. Dava pra sentir, apesar da tragédia anunciada.
A vida precisa seguir um ciclo pré-determinado, é assim desde sempre. As confusões e descaminhos que nos fazem fugir ou mudar de lugar ou atitude perturbam a ordem natural das coisas. Hoje é um dia em que a confusão de uns não vai piorar a de outros. A atmosfera diferente avisa que algumas coisas estão voltando ao seu lugar, se encontrando com seus pares, reencontrando suas origens.
Olhou o chimarrão. Vínculo com uma terra distante, que estava esquecendo há vinte anos e de quem tinha sido esquecido há muito mais tempo. Pra que? Não tinha mais ninguém lá, não tinha para quem voltar. O destino me trouxe a essa terra rica e morna, foi aqui que tentei a sorte que não me sorriu, e foi aqui que lambi minhas feridas, pensou. Essa é a minha terra. É aqui que finquei minhas raízes, é aqui que quero ser enterrado. Meu amigo aviador me disse isso tantas vezes, que só agora, que sinto que emudeceu, é que o entendimento me ilumina.
O ex gaúcho, agora com o rosto iluminado, juntou a bomba, a cuia e a garrafa que sempre trazia consigo, quando estava longe do balcão do bar, atravessou a rua, debaixo de chuva, até uma lixeira, dessas que a prefeitura só instala porque apareceu um picareta oferecendo-as superfaturadas. E ainda eram vendidas duas vezes: para a prefeitura e para os comerciantes, que pagavam pela pobre propaganda nelas estampadas de maneira artesanal. Parou diante da lixeira, braços em riste, deixou cair de forma ruidosa os apetrechos de apreciar o mate. Deu uma solene continência para a lixeira e desceu a rua assobiando. Renascido, se sentia jovem para começar tudo de novo, pois essa era sua Rondônia amada e generosa.
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