segunda-feira, 24 de maio de 2010

Capítulo 2


O vôo agenciado pelo Mauro só aconteceria dois dias depois. Fechei as cortinas, tranquei o avião, lacrei o tubo de Pitot, conferi os calços e amarras e, jogando a mochila puída às costas, levantei os olhos, tentando divisar, encostada à parede de tábuas do único e pequeno hangar da pista de Pimenta Bueno, que ainda contava com uma pequena sala para o administrador da pista, o meu outro camelo, uma Monark barra circular, que tinha mais de trinta anos, e vinte  peças faltando, inclusive os freios, infelizmente. Mas como faltavam também os pára-lamas, frear era expediente simples, levava-se o pé entre o garfo e o pneu, e pronto! Quase tudo sob controle. Aquela bicicleta estava tão ruim, que o medo era só que a levassem para o lixo, desinformados que ali estava o meio de transporte de um vivente que, aos 43 anos, tinha vindo ao fim do mundo levado pelo tornado que deu as primeiras voltas no começo de sua vida, quando descobriu que era o máximo e que tudo podia fazer sem pensar nas conseqüências.

Pedalar os três quilômetros da pista até o hotel foi penoso. Acho que os pneus estavam perdendo ar. Ou meus pulmões. Fumei desde os dezesseis, me achava bonito com esse negócio fumegando nas mãos. Depois do vício instalado, tenho tentado deixar de fumar. Sempre tento deixar esse vício nojento,  no curtíssimo espaço de tempo entre apagar o toco do último e achar o isqueiro para acender o próximo. A despeito do cheiro horrível que sei que está sempre comigo e já nem sinto mais, porque me lembrei  de que já ouvi, não sei onde, que a fumaça do cigarro destrói as papilas da lingua responsáveis pela percepção de odores e sabores, e isso deve ser verdade, ainda me acho dono de um charme incrível. Igual ao dos bonitões cancerosos das sempre belas e aguardadas propagandas da infame industria do tabaco, que inundaram nossos subconscientes desde moleques.

No hotel, os habituais recados dos credores me aguardavam. O da ex-mulher e sempre megera era o mais ácido: se a pensão dos meninos não fosse depositada hoje, novo mandado de prisão seria solicitado ao Juiz da Vara de Família de Goiânia. Subi as escadas que levavam ao cubículo cobrado como quarto. Imaginando os condenados ao cadafalso, perguntava-me se, quando subiam aqueles degraus que os levariam à forca, pensavam na inutilidade daquele castigo capital. Não se tira o que não se tem. Ao pai que falha no sustento dos filhos, não se tira mais nada. Privá-lo da possibilidade de produzir dinheiro só piora, ainda mais, a  situação. Mas, já cansei de tentar entender a lógica da justiça, o máximo que faço é me distanciar de seus cegos tentáculos.

Já passava das quatro e ainda tinha de cavar o almoço que não tinha como pagar. Tomei o segundo banho do dia. Frio, para amansar o calor e esfriar os miolos. Foi difícil achar roupa limpa no meio daquele amontoado de panos azedos que enfeitava o colchão amorfo sobre a cama de madeira descascada. A lavadeira estava numa fase capitalista. Apesar de ser evangélica fervorosa, adepta de ajudar os mais necessitados, estava insistindo em só lavar e passar meus trapos se pagasse alguma coisa dos atrasados devidos a ela. Amanhã o cheque do pagamento do último vôo deveria estar compensado, sacaria o dinheiro e pagaria um pouco ao hotel, ao bar, ao restaurante, à lavadeira calvinista, talvez até depositaria uma parte da pensão dos meus filhos, mas continuaria sem saber o que dizer ao banco que financiou parte do avião, bem como ao retalhista de combustível. Falar nisso, preciso reservar o dinheiro para completar os tanques do Sêneca, o próximo vôo será longo e preciso decolar cheio. Viver um dia após o outro não é vida. A tensão de não saber se os milagrinhos de hoje se repetirão amanhã, mata qualquer um. 

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