Alice resolvera suspender os clientes da tarde. Hoje tinha sido um dia ruim, e não ficaria melhor se insistisse. Até a dor nas costas tinha voltado. Logo no primeiro horário, um restaurado de porcelana não se ajustou ao molar daquele turco gordo, e ele reclamou sem parar, insensível às desculpas e à explicação de que o erro era do protético. O almoço tinha sido um desastre, a empregada havia faltado, ela teve que improvisar com uma lata de atum e um tanto de arroz de outro dia. As crianças estavam barulhentas e exigentes, Camilla estava excitada com o novo balé que estavam ensaiando, era quem mais gritava.
- Seu Bruno e Dona Camilla! Calma, dêem um tempinho para a mamãe. Hoje está tudo dando errado, a Fia não veio, tá tudo uma bagunça, e o barulho piora tudo!
- Eh, dona encrenca, hoje é daqueles dias, de TPM? – Bruno já se achava um exímio entendedor do sexo oposto...
- Mãe, queria chegar mais cedo no balé. - Camilla estava vidrada...
- Não, vou deixar mamãe no consultório e depois te deixo no balé. Hoje preciso do carro para ver uns trem aí... – Bruno era cópia do Pai. Olhar para ele era sempre duplamente bom.
-Esperem aí, vocês já querem regrar minha vida? Negativo. Vamos fazer o seguinte: eu vou cancelar os clientes da tarde, você vai guiar o carro para mim, vamos levar a Camilla, assistir ao ensaio e vamos todos ao Shopping, comer direito, ver vitrines, talvez um cinema... – gostava de conciliar vontades e horários para estarem mais juntos, e ela acertara mais uma vez, dava pra ver nas carinhas.
Ligou para o consultório, deu para ver o alívio da secretária, que adorou a idéia de uma folguinha fora de hora. Bruno, já de banho tomado, estava todo importante ao volante do carro. Estava fazendo os exames para tirar a carteira de motorista. E parecia que levava jeito, como o Pai. Camilla, que adorava encher o irmão, ficava gritando, do banco de trás: - Olha o meio fio! Vai bater na árvore! O poste correu para o meio da rua, para escapar de você! – E ria. A moleca ainda aparecia na bela mulher que estava desabrochando.
Às três da tarde o ensaio começou. Tudo lindo! No intervalo, Camilla veio me perguntar o que estava achando. Estava encantada e os elogios fluíram naturalmente. Ela me perguntou: - Será que papai vai poder vir me ver dançar esse balé? – Quando falava do Pai, falava só do pedaço dele que ela ainda amava, e isso lhe comovia sempre.
-É claro que ele vai ver você dançar esse balé. O outro, que ele não viu, foi porque ele realmente não pode. – Mentiu. André estava bebendo muito e acho que nem ouviu as três ou quatro vezes em que havia dito que Camilla estava se apresentando.
Às cinco da tarde, o ensaio terminou, ainda bem, Bruno já estava impaciente, doido para se sentar ao volante do carro. Foram ao Shopping, viram as vitrines, Camilla queria comprar tudo, Bruno de olho nas meninas, tudo na mais perfeita ordem, conquistada a duras penas. Quando estavam acomodados nas charmosas mesinhas do pequeno bistrô decorado como se estivesse em Montparnasse, o celular tocou:
- Eu me chamo Mauro, estou ligando de Pimenta Bueno, sou amigo do André... – Alice não escutou mais nada. Sabia que esse telefonema aconteceria um dia. Ficou pálida, o telefone caiu sobre o prato ainda vazio. Bruno tomou o telefone e assumiu a conversa. O que mais temia aconteceu. É o que dá adiar o inadiável.
Nos últimos tempos não parava de crescer a certeza de que tinha que procurar André, colocar tudo a limpo. Dizer que o amava, desde sempre, que precisava dele, que queria ver a família reunida e serena. O difícil era a parte dela que queria punir o homem que tanto fez besteiras e a fez sofrer. Era esse lado que aflorava quando havia o contato entre eles. Ficava pior imaginar que ele poderia reconstruir sua vida naquele fim de mundo. Vivia tentando mostrar a ele que tomara a decisão errada, não se esforçando mais para ter a família de volta. Por isso quis vê-lo preso, arrasado. Agora queria dizer àquele homem que ele só conseguiria ser feliz ao lado de sua esposa e filhos...
Os olhos arregalados de Bruno contavam o resto. Demorou conseguir falar. Papai tinha caído, dentro de uma reserva, o resgate aéreo já estava a postos, mas o mau tempo não permitia o trabalho.
Esse era o momento. – Crianças – ela falava assim sempre que tinha uma decisão tomada – vamos agora até a agência de viagens no andar de baixo, deve ter algum vôo para Porto Velho, ou mesmo Vilhena. Vamos buscar o papai! – O choro foi inevitável, as lágrimas dos três molharam um longo abraço. Depois de um longo suspiro, as providências começaram. A agência marcou passagens para as sete e quinze da noite, portanto dali a duas horas. Foi o tempo de passar em casa, banho rápido, cada um arrumou sua bagagem, correram para o Aeroporto.
Alice decidiu que ainda não contaria nada à sogra, pelo menos por enquanto. Era preciso ter notícias mais consistentes.
Pela primeira vez sentia que lutavam por algo comum. Queriam trazer de volta o que faltara todo o tempo. Agora sem ciúmes, exigências, castigos. Estava fortalecida pelo novo ânimo de consertar agora o que só a soberba e a vaidade impediram que já estivesse em ordem há muito tempo...
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