segunda-feira, 24 de maio de 2010
Dedicatória
Queria ter dedicado este livro à minha mãe. Pensei melhor. É muito pouco. Muito, é o meu amor e este, ela já sabe que tem. Júnior.
Prefácio do Autor
Este livro é sobre a vida de uma pessoa que não viveu. E também não existiu como pessoa, apesar de estar em maiores ou menores partes dentro das pessoas que somos. Este livro é para dizer ao meu filho, que agora luta para existir como pessoa, as coisas que existem e vivem dentro de mim.
Nota ao Leitor
Este livro nasceu para te emocionar, e desejo que muito, mas é só. Com simplicidade, com delicadeza, sem pretensão ou maldade, está aqui só para o bem. Espero que traga a você o muito do pouco e o belo do simples.
Desculpo-me desde já por possíveis inexatidões históricas e geográficas, pois não foram intencionais. Se houveram, o amigo leitor as tome por licença literária.
Agradecimentos do Autor
Aos meus Irmãos: Marlos (financiador de primeira hora), Marcos (revisor dedicado e competente) e Murilo (incentivador incansável).
À minha Irmã Marize, de quem nunca me faltou amor e inspiração.
Prólogo
É complicado ser simples. Mas vale a pena continuar tentando. Ser simples te faz leve e solto. Ser simples te faz viver no melhor dos elementos: o ar, entre pássaros e nuvens, a meio caminho do céu. Deve-se buscar alcançar o ar. Valerá sempre, nem que seja pelos últimos minutos...
Alcançar o Ar
LIVRO UM - Capítulo 1
A pancada foi seca, mas muda. O barulho dos dois motores Continental de 220 cavalos, companheiros já de algum tempo, se fazia ouvir pela porta aberta do meu Sêneca de 25 anos, idade perfeita para uma mulher, um pouco demais para um avião. O choque com a copa das árvores, ao fim da pequena pista, da qual decolara há dois minutos, preocuparia qualquer piloto com um mínimo de juízo. Mas não a mim. Sou piloto de garimpo. Sou o máximo.
O garimpo de diamantes em terras da reserva indígena do Parque Aripuanã, Município de Pimenta Bueno, no Estado de Rondônia, a 700km de Porto Velho, emprega todo tipo de gente, até aqueles que não o são. Aqui tudo é arriscado e ilegal. Grandes somas de dinheiro, na mão de aventureiros incorrigíveis, geralmente dólares oriundos de compradores de pedras alemães, franceses e hindus, atraíram naturalmente uma pessoa como eu.
A atividade garimpeira por si só não é ilegal. Mas quando ela envolve desmatamento de parte da Floresta Amazônica, a invasão de reserva indígena (que também é reserva florestal), a extração de pedras preciosas sem o controle dos órgãos reguladores da produção mineral e sem licença ambiental; a corrupção de indígenas, agentes, fiscais e policiais, tanto estaduais quanto federais, a venda do diamante, sem o recolhimento de impostos, feita a estrangeiros que saem clandestinamente e entram ilegalmente no país portando somas indecentes; não só afronta a Lei, é uma panela de pressão cuja borracha já não é mais aquela: é estouro na certa.
Assim, aos trabalhadores braçais de cujos embornais já não sai nem mais uma gota de esperança, aos camelôs e mascates especializados em “artesanato” da China, que produz mal tudo que você acha que pode comprar com esse dinheirinho pouco, vindo via Iquique (porto do Chile) e La Paz (Capital da Bolívia), comerciantes de outras tantas coisas, barbeiros, mecânicos, lavadeiras, açougueiros, prostitutas, sapateiros, juntam-se os pilotos de avião. Normalmente veteranos de outros garimpos, sabem que enquanto voarem suas velhas máquinas, quase sempre em condições impossíveis, são preciosos para aquela atividade.
Naquela manhã, oito horas antes, o sol raiara cínico e cáustico pela janela quebrada do quarto do hotel, cujo gerente ainda acreditava que eu era capaz de pagar o ínfimo aluguel, cobrado semanalmente e invariavelmente empurrado e acumulado para a semana seguinte. Aquele sol exageradamente quente, já às 6 e meia da manhã, era prenúncio de mais um dia em que suas roupas estarão pregadas em sua pele até o anoitecer. O banho rápido pouco melhorou o calor ao qual não me acostumaria nunca. Sempre gostei de acordar cedo, se é que me lembro de ainda gostar de alguma coisa. Hoje o dia seria cheio, mas poderia ser o dia em que minha vida começaria a melhorar.
Dois dias antes, havia feito um vôo em que havia lançado, no meio da selva, de 150 metros de altura, um conjunto motor e bomba de 3 polegadas. Destinado a um garimpeiro de diamantes, pesando uns 280 quilos, desmontado e acondicionado em seis trouxas de sacos de aniagem, uns dentro dos outros, o que amortecia o choque com as árvores e o solo, o equipamento era parte importante da prospecção daquelas adoráveis pedrinhas. Decolamos, eu e um “pau-mandado” do meu contratante, com as benditas trouxas que encerravam agora não um motor-bomba, mas um intricado quebra cabeças de partes de aço fundido, acoplamentos e parafusos, tanque e dutos, bases e eixos, meia dúzia de rolamentos e buchas, latas de lubrificante. Também levávamos oito botijões desses de gás de cozinha, cujas válvulas foram retiradas e agora eram fantásticos recipientes à prova de queda, repletos de óleo diesel. Quarenta minutos depois, após um sobrevôo cego sobre porção de mata densa, onde provavelmente estaria o acampamento, avistamos a fumaça de sinalização.
O procedimento era padrão, se é que operar contrariando todos os princípios do vôo seguro pode ser inspiração para alguma coisa correta, mas vá lá: os garimpeiros, ao escutarem o avião, acendiam uma fogueira com folhas verdes. Assim que a fumaça ultrapassava a copa das árvores, o vento se encarregava de transformá-la numa esteira branca que indicaria ao piloto a direção do vento e a origem do sinal. Assim, avistado o local de lançamento, tomei a perna do vento, ensaiei uma curva base de aproximação contra o vento, flaps a 15 graus, tirei os motores, pouco passo nas hélices Hartzell, velocidade aí pelas 80 milhas, quase em estol, gritei para meu lançador que jogasse o primeiro dos sacos, pela grande porta, logo atrás da asa esquerda. Marquei o ponto de lançamento no GPS e, vinte e cinco minutos depois, os quatorze volumes principais e mais cinco ou seis menores haviam sido lançados. Com a proa em Pimenta Bueno, a volta foi mais um agradável passeio, me fez pensar o quanto seria bom poder estar aqui em cima por mais tempo...
O expediente de lançar coisas em áreas inacessíveis era corriqueiro. De comida, bebida, combustíveis, peças de reposição até revista de mulher pelada e cigarros, lança-se tudo de avião. A alternativa é morosa e ainda mais cara: subir o rio de “voadeira”, pequeno barco de alumínio, tocado a motor de popa, por três longos dias. E ainda: grandes distâncias eram percorridas a pé. Por isso, os períodos de estadia dos garimpeiros, nas áreas de lavra, chegavam a vários meses, evitando-se assim, ao máximo, o deslocamento pelos rios. Vários deles chegaram a me confidenciar que estariam dispostos a pular de pára-quedas para evitar pelo menos a ida às áreas garimpeiras. Sempre ria muito dessa conversa, mas, ao final, cuidava de falar sério, explicando a incompatibilidade do salto com a selva fechada abaixo.
Ao pousar, antes ainda de calçar e ancorar o avião, me aparece o Mauro, o agenciador de cargas, acompanhado à distancia por um sujeito suarento que podia ser tudo, menos garimpeiro. Estes eu já conhecia até pelo andar.
- André, seu filho da mãe, já estava me preocupando com você. O cara do combustível disse que mais uma vez você não completou os tanques. Você sabe que isso é errado, além de perigoso. – Ele era sempre apavorado...
- Bom dia, Mauro, como tem passado? E a família, as crianças... – Devolvi como se não entendesse o assunto.
- André, eu estou falando sério, vem aqui de lado um pouquinho...- Me afastou de seu acompanhante que já se aproximava. - Você sabe que deve lotar os tanques, é procedimento padrão. Sabe que não gosto da maneira como você voa...
- Mauro, eu estou devendo ao retalhista da gasolina há mais de três meses, agora só abasteço à vista e o dinheiro não era suficiente para completar. O dinheiro está sempre curto. Manter o Bruno na faculdade, a Camilla no balé, e ainda os caprichos da louca que é a mãe deles, é brabo... – Falei baixo, mas com veemência.
- André, essa desculpa é velha. Você ganha bem pelos seus vôos. O que te complica é estar em coma alcoólico três dias por semana. Sai dessa vida, velho. Mas, vem cá, vou te apresentar um cliente.
Apresentações feitas. O sujeito suarento é um topógrafo de São Paulo, responsável e técnico de uma empresa que ganhou concorrência no Incra para levantamento e demarcação de terras indígenas, ou reserva florestal, sei lá...O fato é que ele queria contratar o lançamento de víveres para sua equipe de campo, que, pelo telefone via satélite, havia relatado a perda de parte do que havia ido pelos rios, por naufrágio de uma das embarcações. Se o que foi perdido não fosse reposto, teriam que iniciar a volta sem ao menos iniciar o serviço, blá, blá, blá...
E eu achando que ao pousar poderia fumar um Malboro Lights e ir tomar um “Macieira” no bar do Plínio, seguir para o hotel e ver se meu crédito remanescente me permitiria almoçar fiado...
Mas, vamos lá. O Mauro, cioso dos dez por cento que ganharia pelo agenciamento da carga, estava explicando pro “branquelo”, que agora suava em bicas, que o peso, para a autonomia que era necessária, não poderia ultrapassar 600 quilos. Falaram do acondicionamento da carga, nos sacos de aniagem, para suportar o choque com as árvores, o procedimento de sinalização, as possíveis perdas, etc...
Será que os garimpeiros haviam encontrado todas as partes do conjunto motor-bomba que havia lançado pela manhã? Fico imaginando se um daqueles sacos fica preso numa castanheira, árvore que chega fácil aos quarenta metros de altura. E ainda, depois de encontrados os pedaços, montar o complicado equipamento, dispondo de poucas e toscas ferramentas. O desafio é imenso. O calor, os mosquitos, onças e cobras. Mas na carga vieram notícias dos parentes, pilhas para os rádios de ondas curtas e lanternas, carne seca (porque peixe todo dia enjoa), remédios, sabonetes e a playboy daquele mês. O garimpeiro é mais herói que louco. Mas tem muitos daqueles que parecem ser só loucos.
O Mauro se achava agora naquela parte chata de explicar ao freguês de primeira viagem o porque da quantia exorbitante pedida em troca do lançamento iminente. Os custos de manutenção e controle da dispendiosa aeronave, que por ser um bimotor pode operar mais longe e com mais carga, mas consome combustível aos borbotões, os riscos envolvidos, o piloto automático permitia que o lançamento fosse feito pelo próprio piloto, dispensando o necessário ajudante e permitindo mais carga útil, etc...
Fazer comércio é coisa que a humanidade faz com maestria há cinco milênios. Árabes, sumérios e egípcios nos ensinaram a arte de vender nossas supervalorizadas porcarias por muito dinheiro, o mesmo que vai valer tão pouco na hora de trocar pelo que necessitamos, e por aí vai. Nunca fui bom nisso. Acho que só sei mentir em meu desfavor. Por que as coisas não são feitas com o preço normal e justo gravado nelas? Muito tempo, negociação e pechincha, seriam poupados. Será que funcionaria? Mesmo assim admirava os que tinham aquele dom, e principalmente a paciência para aquele jogo.
- André, tudo acertado. – Lá estava o Mauro sorridente. Gosto desse sujeito. Parece amigo e sincero, às vezes até verdadeiramente preocupado comigo. Chegou algumas vezes a me buscar no bar do Plínio, e pedindo que abrisse mão da sexta, sétima ou oitava dose, me carregou ao hotel e, me jogando na cama, fez sermões intermináveis e incompreensíveis para mim, já àquele alto nível etílico. Cuidava de mim com uma condescendência que denunciava nossa franca cumplicidade. Ou será porque meus vôos sempre colocam algum no seu bolso? Não sei, e a essas alturas, importa muito pouco.
Sorri, por pura e hipócrita cortesia, para o homem branco que já estava vermelho e se desmanchando em suor. Vi eles se despedirem com entusiasmo exagerado, felizes com o negócio feito. Eu e meu companheiro alado ali, amarrado ao chão, um beduíno e seu camelo, colocados à força numa caravana na qual, nem o kalifa sorridente ou o kalifa suarento arriscariam seus traseiros. Será que a vida tem mesmo um propósito para cada um de nós? Ou o que somos é só resultado de um exercício sem-graça de probabilidades que quase sempre nos leva contra o que nossas mãezinhas sonharam para nós?
Capítulo 2
O vôo agenciado pelo Mauro só aconteceria dois dias depois. Fechei as cortinas, tranquei o avião, lacrei o tubo de Pitot, conferi os calços e amarras e, jogando a mochila puída às costas, levantei os olhos, tentando divisar, encostada à parede de tábuas do único e pequeno hangar da pista de Pimenta Bueno, que ainda contava com uma pequena sala para o administrador da pista, o meu outro camelo, uma Monark barra circular, que tinha mais de trinta anos, e vinte peças faltando, inclusive os freios, infelizmente. Mas como faltavam também os pára-lamas, frear era expediente simples, levava-se o pé entre o garfo e o pneu, e pronto! Quase tudo sob controle. Aquela bicicleta estava tão ruim, que o medo era só que a levassem para o lixo, desinformados que ali estava o meio de transporte de um vivente que, aos 43 anos, tinha vindo ao fim do mundo levado pelo tornado que deu as primeiras voltas no começo de sua vida, quando descobriu que era o máximo e que tudo podia fazer sem pensar nas conseqüências.
Pedalar os três quilômetros da pista até o hotel foi penoso. Acho que os pneus estavam perdendo ar. Ou meus pulmões. Fumei desde os dezesseis, me achava bonito com esse negócio fumegando nas mãos. Depois do vício instalado, tenho tentado deixar de fumar. Sempre tento deixar esse vício nojento, no curtíssimo espaço de tempo entre apagar o toco do último e achar o isqueiro para acender o próximo. A despeito do cheiro horrível que sei que está sempre comigo e já nem sinto mais, porque me lembrei de que já ouvi, não sei onde, que a fumaça do cigarro destrói as papilas da lingua responsáveis pela percepção de odores e sabores, e isso deve ser verdade, ainda me acho dono de um charme incrível. Igual ao dos bonitões cancerosos das sempre belas e aguardadas propagandas da infame industria do tabaco, que inundaram nossos subconscientes desde moleques.
No hotel, os habituais recados dos credores me aguardavam. O da ex-mulher e sempre megera era o mais ácido: se a pensão dos meninos não fosse depositada hoje, novo mandado de prisão seria solicitado ao Juiz da Vara de Família de Goiânia. Subi as escadas que levavam ao cubículo cobrado como quarto. Imaginando os condenados ao cadafalso, perguntava-me se, quando subiam aqueles degraus que os levariam à forca, pensavam na inutilidade daquele castigo capital. Não se tira o que não se tem. Ao pai que falha no sustento dos filhos, não se tira mais nada. Privá-lo da possibilidade de produzir dinheiro só piora, ainda mais, a situação. Mas, já cansei de tentar entender a lógica da justiça, o máximo que faço é me distanciar de seus cegos tentáculos.
Já passava das quatro e ainda tinha de cavar o almoço que não tinha como pagar. Tomei o segundo banho do dia. Frio, para amansar o calor e esfriar os miolos. Foi difícil achar roupa limpa no meio daquele amontoado de panos azedos que enfeitava o colchão amorfo sobre a cama de madeira descascada. A lavadeira estava numa fase capitalista. Apesar de ser evangélica fervorosa, adepta de ajudar os mais necessitados, estava insistindo em só lavar e passar meus trapos se pagasse alguma coisa dos atrasados devidos a ela. Amanhã o cheque do pagamento do último vôo deveria estar compensado, sacaria o dinheiro e pagaria um pouco ao hotel, ao bar, ao restaurante, à lavadeira calvinista, talvez até depositaria uma parte da pensão dos meus filhos, mas continuaria sem saber o que dizer ao banco que financiou parte do avião, bem como ao retalhista de combustível. Falar nisso, preciso reservar o dinheiro para completar os tanques do Sêneca, o próximo vôo será longo e preciso decolar cheio. Viver um dia após o outro não é vida. A tensão de não saber se os milagrinhos de hoje se repetirão amanhã, mata qualquer um.
Capitulo 3
Rondônia é ainda um estado novo, apesar de desbravado pelo Marechal Rondon, ainda no comecinho dos milenovecentos, o herói que plantou postes de telégrafo pelo Brasil afora. E agora, transformado em fronteira agrícola e madeireira, está desabrochando seu potencial. Terra de aventureiros no passado, agora tem o forte toque do agri-business, as ruas esburacadas das jovens cidades estão sempre cheias de camionetas novas, guiadas por gaúchos e paranaenses enchapelados, sempre portando grossos talões de cheque da agência local do Banco do Brasil. Sempre me chamou a atenção esse tipo de crédito dado a esmo, só para gerente cumprir cota, que brindava muitas das vezes apenas um aventureiro que estava ali só de passagem. E eu, que nem crédito tenho, me colocaria onde?
Aqui em Pimenta Bueno, onde o agora insofismável agro-negócio tem um dos focos também na imensa produção de bananas, o garimpo ainda movimenta muito dinheiro, nota-se o comércio viçoso e alguns novos ricos que já se exibem sem remorso. Atravesso a rua do hotel e entro no bar do Plínio, onde o primeiro conhaque já está demorando.
Plínio é um gaúcho que está aqui há duas décadas, recebeu um lote de terras do Governo, gastou o dinheiro que pegou no banco, mais o resto do que tinha, no beneficiamento da fazenda: desmatou, plantou capim, construiu cercas, pôs gado, abriu estrada, fez represa. Trabalhou feito louco, quase morreu nas duas vezes em que pegou malária, mas não ganhou o suficiente para pagar o Banco. A fazenda foi a leilão, a dívida paga em parte e agora, o pequeno bar, em nome de um parente próximo que mora distante, era a atividade desse outro e último amigo feito por aquelas bandas. A história daquele homem magro e alto, feio por causa do nariz adunco, era quase toda só tristeza, mas ele era um cara bem resolvido e quase feliz. Dizia sempre saber que a guerra estava perdida, mas se sentia bem comemorando as pequenas batalhas vencidas na luta do dia a dia. É cada uma...
- André, e o vôo, como foi? Correu tudo bem? O Mauro passou por aqui mais cedo, preocupado. Disse que tu tinhas decolado com pouca gasolina, e tal... O que houve contigo, chê? – Vinte anos e o sotaque dos pampas estava lá, firme.
- Você conhece o Mauro, fica me pajeando como se eu fosse criança. O vôo foi de rotina e correu bem... – Respondi por obrigação, essas demonstrações de preocupação quase sempre me chateavam.
Plínio me serviu o aguardado Macieira. Fez cara feia antes de servir o segundo. Para evitar mais um comprido e dispensável sermão da montanha, resolvi voltar logo ao hotel e almoçar, estava com fome. Àquela hora, calor demais, todo mundo tinha o que fazer à sombra. Atravessei a rua arrastando os pés. O térreo do hotel era quase todo tomado por um restaurante mobiliado com simplicidade pobre. A comida insossa e fria diminuiu o mal estar de comer sem pagar. O arrendatário do restaurante do hotel, um paranaense cujos óculos de fundo de garrafa estavam sempre engordurados, era gente muito boa, nem se importava com a pendura contumaz, e ainda a ponto de nem perceber que sua patroa, uma maranhense baixinha, vivia me sussurrando improbidades, com voz macia que só ela tinha, no português bem falado do Maranhão. Às vezes, quando tinha paciência para ouvir seus gracejos, chegava a me lembrar do tanto que era boa a companhia feminina. Vinha dar nas telhas a lembrança de mulheres as quais amei, mais ou menos, por mais ou menos tempo, entre elas a mãe de meus filhos, nessas horas ainda com aquela carinha boa que me levou ao altar.
Mulheres. Um amigo de meu pai tinha um discurso de uma hora sobre o poder que as mulheres tinham sobre os homens, e não sabiam. Aliás, poder sobre o mundo. Ria alto e me dizia que nenhum carro de luxo, roupa de griffe, perfume, sapatos e jóias; seriam vendidos ou comprados por homens, se não fossem as mulheres. Para não dizer que hotéis de luxo, salões de barbeiro, restaurantes e resorts badalados estariam todos às moscas. Sempre me moveu a idéia de que realmente, não fossem as mulheres, o mundo estaria entregue a uma horda de bárbaros barbudos e mal-cheirosos, andando em carros velhos e sujos, imunes à propaganda e as armadilhas sexuais da mídia. E se elas percebessem que o mundo gira em torno da necessidade de conquistar seus favores, aí sim estariam cientes do poder que têm. O mundo só é machista porque é a elas que ele pertence. Só que elas não sabem...
Voltei ao Plínio. O bar estava cheio, eram sete da noite. A mesa de sinuca estava sufocada por uma dúzia de pobres-diabos, sebentos e barulhentos, jogando a dinheiro ou apostando nos que ainda estavam meio sóbrios para segurar os tacos. As bolas lascadas sobre o veludo que já havia sido verde eram o resumo da pobreza do lugar. Putas gordas, de um descolorido triste, já tomavam seus lugares de costume, na esperança de pescar um bagre que ainda tivesse algum dinheiro e que não estivesse cheirando tão mal. Lembrei-me do poder que elas têm e não sabem. Fiquei com pena...
- Plínio, coloca mais um conhaque ai...
- André, você precisa parar com a bebida. Gosto de ti barbaridade, mas assim não dá. Tome só mais um e já conversamos mais... – Entendi que assim que desocupasse, queria conversar comigo. O cara cismou que é meu irmão mais velho. Mas gosto dele assim mesmo.
Peguei o copo e fui até a última mesa vaga. O barulho, vindo de bêbados e marafonas, subia acima da inacreditável nuvem de fumaça, vinda de cigarros baratos. Ambiente ruim. Companhia ruim. Vida ruim. Mas a bebida é boa e me faz sentir menos ruim.
Preciso ir dormir, se é que isso é possível num calor assim. Amanhã preciso ir ao banco, ver o que faço com a ninharia que, tomara, já deveria estar lá, mas antes, devo ir até a pista ter com meu (e do banco) avião, ultimar preparativos para o frete dos víveres dos topógrafos que perderam sua comida, coitados.
- André, tu não está bem... – Plínio arranjou um tempo e veio até minha mesa de lata encardida, ladeada de duas cadeiras tortas e uma quebrada, vítima tartamuda, provavelmente, da última das freqüentes brigas dali. Antes de falar, ficou um tempão esfregando as mãos num paninho encardido, como se estivesse pedindo desculpas pela indesejada intromissão.
- Estou bem, Plínio – menti, até para ver se ele parava de massacrar o paninho sujo – Estou só relaxando um pouquinho, fazendo um quilinho do almoço quase janta, um conhaquinho, um cigarrinho e já vou dormir. Amanhã devo te pagar um pouco do que pendurei aí...
-Não te preocupes, André, por mim não. Sabes que só me paga se estiveres abonado. Tem falado com teus guris?
- Anteontem. Bruno diz estar gostando do curso de Engenharia. Camilla, já fez treze anos e continua firme no balé. Menina estudiosa, ainda bem que puxou a mãe...
- E tua ex, muita brabeza?
- Sabe como é ex-mulher, ela quer todo o castigo do mundo desabando sobre minha cabeça. Parece que vai pedir ao Juiz outro mandato de prisão. Não entendo. Cada precatória de mandato de prisão que vier aqui vai me quebrar por meses, como na última vez. Gastei uma fortuna pagando propina pra renca da delegacia de capturas de Cacoal. De delegado a escrivão e motorista da viatura, todo mundo levou o seu... Assim, só vai ficando mais difícil pagar as pensões atrasadas...
- Por que tu não conversas com ela?
- Porque não há mais clima para conversa. Depois de um “oitudobem” gelado, vem um sermão interminável, seguido de uma choradeira terrível, com acusações de toda ordem. Reconheço as enormes burradas que fiz, mas preciso convencê-la de que essa tortura não me fará voltar no tempo e evitar o mal-feito...
- E teus guris, não ajudam a melhorar o clima? – Plínio perguntou já sabendo a resposta, também ele tinha ex-mulher e filhos.
- Eles se sentem na obrigação de estar ao lado da mãe, é compreensível. Acho que entendem minhas razões, mas daí a mudar a cabeça da mãe, vai um quilo e uma rapadura.
- O goiano fala engraçado, barbaridade!
- É... Vou me deitar, o calor já cedeu um pouco. Amanhã acordo cedo... Obrigado pela preocupação, mas minha vidinha é um pouco complicada mesmo...
Capitulo 4
Ele tem a fuselagem branca, as listras azuis emolduradas em discreto dourado, que o fazem lindo para meus olhos. Meu Sêneca II, fabricado em 1980 pela Embraer, é de uma safra rara. Estou com ele há pouco mais de um ano e está equipado com IFR King digital, radar Bendix colorido, GPS Garmin 100, piloto automático III eixos, diretor de vôo, transponder kt-76, HSI, RMI, rádio SSB,etc, etc... Essa sopa de consoantes me deleita. Adoro aviões, e este em particular. Como os vôos são basicamente para transporte de mercadorias, os bancos destinados a passageiros foram retirados, ficando apenas o do piloto e mais um de passageiro, lado a lado, à frente na cabine. Feitos em fino couro bege, eles são uma beleza. O carpete marrom claro já mostra o excesso de sujeira acumulada, resquícios das cargas levadas pra todos os cantos dessa bela, misteriosa Amazônia. O log-book, a caderneta de operações da aeronave, já acumula 3.200 horas voadas, 330 delas sob minha pilotagem. Algumas pequenas revisões de praxe estão atrasadas, mas isso a gente vê depois.
O Cherokee, monomotor em que eu voava até quatorze meses atrás foi dado como parte de pagamento do Sêneca. Aliás, a história não é só essa. O ex-dono dele, piloto conhecido na região pelo apelido de “Paulista” e pelo cuidado e competência ao manche, foi voar uma outra aeronave, um Bonanza de cauda em “T”, de um garimpeiro que precisava de socorro médico e estava sem condições de pilotar. Quarenta minutos após a decolagem, uma pane de magnetos levou o Bonanza ao chão. Morreram os três ocupantes: o garimpeiro, um gerente dele e nosso companheiro piloto. Paulista deixou viúva e dois filhos em Presidente Prudente. O Sêneca, recém financiado pelo já não mais piloto, me foi cedido por sua viúva pelo meu Cherokee quitado, mais uma quantia guardada na marra, e mais algum emprestado de outros pilotos, uma química danada. Assim, passei a voar o que, na aviação geral é a melhor relação ente custo, benefício e segurança. O carnê das mais de quarenta parcelas ainda devidas ao banco ainda andou comigo, sempre à mão, enquanto ainda conseguia pagá-las. Agora, só um milagre ou prêmio de loteria me salvaria do arresto já impetrado pelo banco. Minha belezinha riscada de azul logo estaria num pátio de leilões.
“Mas sinto que amanhã é o primeiro dia da mais espetacular guinada já acontecida em minha vida!”. Esse pensamento estava me martelando. Então, abri o avião, inspecionei as tomadas de ar dos motores, flexíveis do sistema hidráulico do trem de pouso, calibrei pneus, já meio gastos, e por isso impediam a calibragem correta, também drenei os tanques, arejei a cabine, fiz o check dos equipamentos e superfícies de controle, revi o alinhamento de rebites das longarinas e tudo o que eu lembrava ser importante do que me disse o Aureolino, instrutor já na época com mais de trinta anos de Escolinha na distante e querida Goiânia, antes de funcionarmos o Aeronca Chief, de asas enteladas, no qual fiz instrução de piloto privado. Fui bom aluno e logo cedo aprendi a reconhecer um “manicaca”, o barbeiro dos céus.
As lembranças de vinte e cinco anos atrás vieram como brisa fina e fresca. Eu ainda tinha cabelos, muitos e longos, querer voar parecia brincadeira a todos que me ouviam desfiar meus planos. Meu pai, patrocinador incansável de minhas vontades, não pensou duas vezes: me pagou o curso e ainda me ajudaria a interpretar cartas de navegação e mapas meteorológicos.
Meu pai. Homem de grande conhecimento geral, muita visão e um talento formidável para o prejuízo. Empreendedor nato, fazia tudo certo, até ser passado para trás, por alguém menos competente, mas malandro. Sua inocência virou folclore na família. A brisa parou de soprar. Perdeu-se no abismo que se abriu entre meu pai e eu no decorrer destes muitos e pouco alegres anos. Oh, meu pai, não tivesse havido aquele infame infarto fulminante que o matou! Seis anos já se passaram desde que esta notícia inexorável chegou pelas grades da cela onde estava, por ter sido incriminado por tráfico. Injustamente, hoje já se sabe. Só não sei se a notícia da minha prisão chegou antes ou depois da fatal falência do coração amoroso daquele homem, do qual eu não soube aproveitar quase nada.
O pequeno caminhão tanque se aproximou lentamente. Da cabine desceram o motorista e um ajudante. Macacões impecáveis com o logotipo da Shell. Piada. O combustível que abastece os aviões nesta região vem das mais diversas distribuidoras, sofre batismos e desvios de todo tipo. Às vezes não tem nem o cheiro da saudosa e pura gasolina verde, a GAV 100/130. Mas, vá lá: é a que tem e, pior ainda, devo um bocado deste coquetel ao retalhista, gente boa, mas que, quando me cobra os atrasados, me constrange e faz sofrer.
- E aí, André, vai uma “gasosa” na máquina? Soubemos que vai voar amanhã bem cedo...- O rapaz negro era alto como bambu de colher mamão.
- Vou Pelé. Faça o teste do combustível, complete os tanques e me passe a boleta para documentar o log-book. – Notei a estranheza dos dois, ao me ver solicitar o teste de qualidade padrão, pouco comum naquelas condições ruins de operação.
- Ok, doutor. Tudo conforme o Manual...- Gesticulou, com ginga incrível.
- Vou pagar em cheque. À vista, com fundos. - Assim esperava, vamos torcer para que o dinheiro do garimpeiro já estivesse na conta.
- O patrão vai te telefonar hoje de novo, esteja preparado...- Esse Pelé adora dar esse tipo de notícia, mais para me ver sofrer do que para cumprir a obrigação de ter dado o recado.
- Estou resolvendo essa situação. Eu explico para ele. – Talvez assim ele entenda que este é um assunto entre o patrão dele e eu...
Dever dinheiro a alguém me mata. E, por azar, meus credores querem, ao me cobrar, me fazer acreditar que a quebra na promessa de pagamento, além de inadmissível, me coloca na condição de bandido. Ora, se eles me convencerem disso, certamente passaria a negar a dívida, o que me confunde e chateia. Aquela frase cínica: “devo, não nego, pago quando puder” vai piorar: “devo, não pago, nego enquanto puder”.
Duas da tarde. A esta hora o calor já não mais incomoda. Ele é parte de seu ser, tomado por uma onda de combustível de foguete misturado com anestésico. Você não mais sente o calor. Você está em chamas e não sente. A roupa molhada e colada ao corpo como uma embalagem à vácuo, parece a pele cheia de dobras de um lagarto. É isso, sua porção lagarto assume sua mente e o calor indecente, que já é algo sublimado, desaparece sob aquele torpor.
Assim, como lagarto obediente, termino as tarefas propostas: limpo, ajeito, tranco, amarro, e, ao final, me despeço da ainda minha máquina de voar. Não tinha tido ainda a coragem de pensar que, afinal, posso não conseguir evitar que o banco a tome de mim.
Paro a bicicleta sem freio à porta do banco, e encosto meu descascado camelo à mureta encardida que limita um canteiro de plantas, já extinto e transformado em lixeira. A humilhante porta giratória me dá mais um baile. Pra variar, só dois dos seis caixas pensados pelo financista bondoso, estavam funcionando. Filas enormes, porque muitas são as pessoas que têm pouco dinheiro. Crianças e velhos agora são usados para se passar à frente, quase todo mundo se faz acompanhar de um ou outro, todos gostam de levar vantagem em tudo, certo? Calor. Minha porção lagarto se posta imóvel ao fim da fila. Vai demorar. Tudo bem...
O dinheiro, distribuído aqui e ali com a parcimônia que não faz meu tipo, acabou rápido. Pudera! Cidade pequena, os credores te pegam à saída do banco. Estou liso de novo. Salvei o da lavadeira, o do cigarro, ainda bem...Tem o vôo de amanhã, provavelmente o Mauro já pegou o cheque daquele topógrafo. Daqui a dois dias, o lagarto se posta novamente nessa fila, pega o dinheiro, causa outra roda de credores, ali mesmo, na calçada, e por aí vai.
- André, meu ás preferido! – O Mauro tinha essa mania de sair do nada e pular na sua frente, solfejando elogios mentirosos. – Está tudo pronto para amanhã? Já abasteceu? A carga dos topógrafos está pronta, estou vindo de lá agora. Vai estar na pista às 6 e meia de amanhã. Seiscentos e vinte quilos, eu mesmo pesei. Já fizeram contato, entenderam direitinho o negócio de prestar atenção ao barulho, da fumaça, tudo beleza!
Tem desses sujeitos que acham que otimismo é um estado de espírito. Outros se escondem atrás dele para fugir da realidade. O Mauro faz um e outro. De onde ele tirou essa de que tudo já foi combinado e vai dar certo, como se fosse por música? Ora, essa! É claro que vai haver problemas. Tomara que pequenos e contornáveis, mas com certeza haverá um monte deles.
Uma das lições de meu pai, que também bateu na trave de meus ouvidos e não entrou, era sobre a antecipação de problemas. Ele dizia que ao invés de gastar tempo antecipando os milhares de problemas que poderiam surgir numa determinada situação e ficar imaginando uma solução para cada um deles, era melhor estar atento e disposto para, se surgir um abacaxi, resolvê-lo segundo seus instintos. Apenas se e só no momento em que surgir. Essa valiosa lição, perdida há tanto tempo, a vida me ensinou mais tarde, aos trancos e barrancos. Um pouco tarde demais, mas quem podia adivinhar?
-Ok, Mauro. E aí, já surgiu outra coisa? Você sabe o quanto estou enrolado. Tem o Banco, a Alice (minha ex), a gasolina, a lavadeira que não pode atrasar o dízimo, o empréstimo que tomei do Chico, estou mesmo lascado...- A lista não para de crescer, e já é um dos motivos para a esperada amnésia que me traz o conhaque, meu amigo mudo de tantas horas, ultimamente.
- André, meu amigo. Estou cuidando de você. A empresa de topografia deve precisar de mais um ou dois desses vôos. O chefe cinta-larga está esperando um carregamento de armas e munições que estou ajeitando para você levar... – Aquela falsa alegria tinha que esconder alguma tramóia. Esse cara não engana ninguém!
- Mauro, pelo amor de Deus! Isso de contrabando de armas é fria, preciso deixar desse tipo de coisa, você sabe! Isso dá cana e feia... – Falei com uma raiva que, sabia, bateria em ouvidos moucos...
-Andrezinho, essas armas vão chegar lá de um jeito ou de outro, é claro que você vai levar, nós precisamos da grana... – O Mauro me lembrava daqueles cafetões de filmes americanos dos anos setenta, só faltava o blazer brilhante e o cabelo pregando de brilhantina. Mania de achar que se está imune para as conseqüências do mau-feito. – Você vai e pronto! – Ameaçou de mentirinha...
A área garimpeira era no Parque Aripuanã, reserva indígena do povo dos “Cinta-Largas”, nativos que controlavam a entrada e saída de garimpeiros, distribuíam áreas de lavra, desmatavam (o índio é inimputável, pode desmatar e matar, que não vai preso, a Lei os trata como crianças), tudo em troca de 20% do diamante garimpado. Às vezes, esse arrendamento era pago com armas, contrabandeadas via Paraguai. Os “Cintas Largas” adoram camionetas japonesas e armas de grosso calibre. Já havia feito um vôo desses. Voei, ainda no valente Cherokee, para sudeste, até Sucre, na Bolívia, onde, em uma pista clandestina fui carregado com 50 fuzis do tipo AR-15, não tenho certeza, pois só os havia visto antes pela televisão. Na volta, reabastecimento em Guajará-Mirim, onde morri de medo de ser descoberto, e voei direto até a reserva. Pousei na pista perto da aldeia onde, sem que eu percebesse antes, já estava pousado um Baron que, eu já sabia, era usado por agentes do Ibama, que por aqui exibem autoridade de Policia Federal. Tremi. Estava tudo perdido. Abaixei a cabeça sobre o manche, escolhendo entre me deixar prender ou tentar fugir, quando escutei o barulho de festa em volta do avião. Quando levantei os olhos, o chefe Nacoça Napara Piu Cinta Larga, já havia aberto a porta e arrastado para fora uma das compridas caixas onde estavam os rifles. Em um minuto, duas ou três dessas armas já estavam municiadas e atirando para o alto. Os estampidos tinham o eco da morte, me arrepiaram todo! E tome alegria. E os agentes que haviam chegado no Baron, onde estavam? No meio da festa, bebendo, rindo, e, pior, experimentando os rifles! Fiz que não os vi, desembarquei, empurrei uma das asas até que o avião fizesse a volta, afastei mais alguns índios alegres de tanta cachaça, constatei que a carga já não mais estava na cabine, embarquei, fechei e travei a porta, pulei no manche. Liguei a bomba de combustível, magnetos, manete, contato, o rugido familiar do Lycoming de 140 hp encheu o ar, soltei os freios, flaps a 10 graus e tome gás! Quando já estava a 700 pés é que voltei a respirar.
Fiz esse vôo numa época em que desconhecia a estranha simbiose entre fiscais e agentes do governo com madeireiros, fazendeiros, garimpeiros e índios. Quando pousei em Pimenta e o Mauro veio me perguntar do vôo, ainda estava esbaforido e contei tudo de uma vez só. Só percebi que ele ria a valer depois que terminei. Êta brasilzinho, viu!
Eu só gostava de coisa mal-feita quando queria atingir meu pai. Não me perguntem por que. Eu fui mimado e amado demais. Meu pai chegava a adivinhar minhas vontades e minha mãe era só cuidado. Fui um adolescente mal-educado, egoísta e voluntarioso. Reconheço. Não via defeitos em meus pais e já percebia alguns dos meus. Acho que por isso queria puni-los. Naquela época acreditava que o destino tinha a obrigação de conspirar para que eu tivesse uma vida no mínimo perfeita. Os defeitos, eu já os tinha, mas eram meus e ninguém tinha nada com isso. O papel dos outros era só cuidar para que fosse providenciado o que me faltava. Não sei direito, evito pensar no assunto. A consciência doeria demais...
Mas o Mauro... Gente muito boa, foi representante de remédios, estava bem de vida, quando aceitou o convite de um cunhado para ser sócio dele numa balsa no garimpo de ouro no Rio Madeira. Por oito anos o ouro de aluvião, juntado pela correnteza forte do rio forçando pelas fraldas de pedras, atraiu gente do País inteiro. O rio Madeira virou uma Serra Pelada fluvial, uma Babel de sotaques. Centenas de dragas montadas em balsas, que tinham acomodações para até trinta homens, reviraram, dia e noite, o leito encoberto por águas sempre turvas. Topou o desafio, tiveram sorte logo de cara, gostou da vida de garimpeiro, torrou muito daquele dinheiro fácil com mulheres e jogo, abandonou a família porque agora, livre, podia tudo. Mas o ouro acabou. Falido, veio para Pimenta por acidente e foi ficando. Algumas cidades têm vocação para curva de rio: só pára garrancho. Acho que esta cidade também é assim. E o Mauro foi ficando, a comunicação fácil adquirida na profissão de vendedor foi o gancho para virar agenciador de cargas entre os pilotos do lugar.
Da vida de representante de remédios, conta sempre das farras homéricas em hotéis de São Paulo patrocinadas pelos laboratórios de fármacos. Vender remédios era uma arte que, quando desvendada nas longas conversas que tínhamos quase sempre à tardinha, nas cadeiras de espaguete remendado, à porta do hotel, me encheu de asco: o mercado de remédios vive às custas de comissões obscenas, repassadas em dinheiro vivo, para os charlatões e falsos magos que sempre empurram aquelas porcarias nos desesperançados doentes, que raramente tem a sorte de ser atendidos por médico ou farmacêutico isento.
Hoje, o Mauro vive até bem, continhas em dia, já sofre menos da saudade da mulher e filha, que nem desconfiam de seu paradeiro, devem até pensar que se afogou. Mais um com a vida enrolada...Mas, quem sou eu para falar?
- André, o que foi compadre? – Mauro era uberabense, o sotaque caipira meio forçado, acho que para divertir o interlocutor. Chegava a ser divertida sua imitação de mineirinho caipira – Está sonhando? Um doce para saber o que tanto você pensa. Por um momento, me pareceu que estava pensando na vida. E, você sabe, de pensar morreu um burro... – Brincou, meio sem graça, sabia que tinha forçado a barra...
- Já passou, Mauro, tá tudo bem. O negócio das armas me chateou. Mas, vá lá, se pintar eu faço de novo, só quero que você peça um pouco mais pelo serviço. Vou comer alguma coisa e tentar dormir mais cedo. Amanhã o dia vai ser duro.
- André, por favor, não beba até amanhã, fica frio. Até sua volta já vou ter mais trabalho para você, vamos aproveitar a maré boa, você precisa sair deste atoleiro e estou a fim de te ajudar... – Agora seu tom era sério, e eu o preferia assim.
- Ok, você sabe que estou tentando. Só vou ao Plínio hoje para jogar conversa fora. Apareça por lá. – Não era um convite e meu amigo sabia disso.
- Hoje vou a Cacoal, só volto amanhã. Inclusive, devem estar chegando os pneus que você pediu. E depois, tem uma professorinha me esperando por lá. Tem vezes que acho que o destino talvez permita que eu reconstrua minha vida. – Engasgou, a culpa atravessou a goela daquele vivente. Me deu pena, mas, que remédio?
Culpa. As besteiras que a gente faz vão deixando um limo, um mofo, que começa a se acumular pelas dobras da pele e logo já são uma corcunda de duzentos quilos pesando sobre sua carcaça. Achar o culpado é o mote de novelas, filmes, livros, causas jurídicas, inquéritos policiais, fofocas entre vizinhos, brigas de casais, discussões entre pais e filhos, e mais. Se as besteiras que fazemos nos enchem de culpa, é natural aliviá-la tentando costurar um outro culpado na história. Bati o carro, mas aquele ali me fechou. Não paguei, porque não recebi. Fiz, mas ela também fez. E etcetera. E aí vem meu pai de novo, que dizia ser pouco importante achar culpados. Precisamos aceitar a culpa como parte da qualidade de assumir nossos erros, ele disse várias vezes ao meu ouvido surdo. Aceitar que erramos é a garantia de errar menos ou até não errar na próxima. Diminuir nossa carga culpando sofregamente a outros, nos fará errar de novo. Vou me lembrar de dizer isso ao Mauro. A culpa que carrega por ter abandonado a família precisa ser assumida, entendida, quantificada, e mesmo que não perdoada, que sirva de alerta para a nova tentativa com sua professorinha...
Resolvi encompridar o caminho de volta ao hotel. Montei a bicicleta, e concentrei o peso num dos pedais. Pedal, nada. Dele só restava a cânula de lata polida por centenas de solados e pés descalços, nos quais imprimia dor pela concentração do peso. E dói mesmo. A vantagem é que a bicicleta se encarregava dos gemidos. Altos e estridentes, provavelmente falta de graxa, iam abrindo caminho pela rua de poeira. Fui até o mercadinho no final da rua. Gilete, sabonete, sandália de borracha, cigarros. Engraçado, tive a impressão de estar reduzido a tão pouco...
Capitulo 5
Chegando ao hotel, ela estava lá. Alta, loura, belga. Astrid, da World Wild Foundation, engenheira florestal, trabalho voluntário. Mapeamento de queimadas na Amazônia. Já a havia encontrado três ou quatro vezes, no hotel, onde almoçava de vez em quando, e no seu hotel, onde a encontrei na recepção quando aguardava um cliente. Todas as ocasiões foram embaraçosas para mim, sempre pego desarmado por tanta beleza.
Ela, sempre alegre e linda, me dirigia sorrisos estonteantes. Como agora, e eu, como sempre embasbacado demais, me odiava por não ter adivinhado aquele encontro e dado um jeito naquela sandália de borracha que teimava em sair do tosco pacote danificado na aventura ciclística.
- André, você está bom? Voando muito? Muito quente? – Ficava mais linda falando mal o Português que, afinal de contas, nós mesmos não sabemos falar.
- Estou ótimo Astrid. Mais agora, te vendo alegre assim. O que foi, conseguiu conter mais um destruidor da natureza? – Achei que tanta alegria só pudesse ser porque tivesse salvado mais algumas árvores...
- Estamos sempre alerta. Salvar árvores é muito bom. Gratefull! Mas estou feliz por ver André. – Ouvi e não entendi, apesar de haver compreendido as palavras. Feliz por me ver?
- Você quer ajuda, precisa que te faça algo? – Achei que talvez pudesse ser útil àquela linda mulher.
- Gostaria jantar... dinner with me? Encontrar comigo? – Eu não acreditava no que estava ouvindo. – Hoje de noite.... tonight?
- Sim, claro é um prazer. Onde está o resto de sua equipe? – Perguntei por simplesmente não saber o dizer.
- Viajando de carro para aqui. Peguei carona em Hércules da FAB. Cheguei um dia antes... – Ela é tudo de bom, e com certeza esse sonho vai acabar logo, como todos os meus sonhos bons, ultimamente.
- Eu te pego no seu hotel. A que horas? – Nesse sonho eu também falava de um jeito esquisito...
- Oito e .... Eight thirty, ainda bem você entender inglês. See you! – E me beijou a face. Foi rápido, seus cabelos louros me roçaram a pele. Fiquei com medo de ter câimbras e cair no chão à sua frente. Ela se virou, o quadril largo e forte sob a calça larga de brim, estampa imitando folhas, elástico nas canelas, coturno alto, blusa cheia de bolsos. Esses estrangeiros acham que estão lutando uma guerra, esse aparato todo, jipes quatro-por-quatro, rádios de campanha, cintos de utilidades, sei lá.
Mas ela, não. Nossos raros e casuais encontros foram curtíssimos, falamos muito pouco, ela menos ainda, pelas dificuldades naturais da língua. Mas percebi que suas preocupações ecológicas estavam um pouco distantes daquele exagero normal ao pensamento dessas ONG’s. Percebi que sua atuação na preservação de matas se dava mais pela preocupação com o futuro das pessoas que aqui vivem e de suas necessidades extrativistas, do que o Protocolo de Kyoto, por exemplo.
Subi ao meu quarto. Atordoado pelo ataque de beleza e promessa. Um trapo de gente como eu pode interessar àquele anjo louro? Não. Então ela só quer companhia para o jantar. É isso. Serei só o cara que puxa a cadeira para ela se sentar e vigia sua senhoria da gana dos comuns. Sempre foi assim. Quando garoto, ainda antes dos vinte, percebi que nunca interessaria às mulheres que eu julgava interessantes. As da minha idade já queriam namorar para casar e só olhavam os caras de 25 ou mais. As meninas de 13 anos ainda estavam brincando de boneca. Ainda bem, porque de nada sabiam falar. Comecei, então a estar com mulheres que já aos 23,24 já haviam se decepcionado com um monte de namorados e estavam, por sua vez, querendo um frangote para ajudar a criar e poder controlar. Entrei no jogo, era bom poder estar aprendendo com moças mais experientes. E era bom relatar estas experiências aos amigos de mesma idade que ainda não tinham descoberto aquele filão. Mas, e essa agora? Será que Astrid tinha visto algo em mim? Será que eu estava mesmo entrando numa maré de sorte? “Amanhã pode ser o dia em que as coisas vão começar a melhorar...” Pode ser.
Tomei banho. Estreei a gilete. Estranhei o reflexo daquele rosto ainda bonito e agora sem a barba de dez dias. Achei calças limpas, a bagunça era tanta que até pequenos milagres desse tipo eram possíveis, passei a ferro a cueca lavada há pouco no chuveiro, reformei uma camisa. Reformar camisa suja é experiência antiga. Lavam-se o sovaco e o colarinho, pouca água e sabonete. Toalha em cima, passar o ferro bem quente. Pendurar num cabide, mais um pouco do vapor do chuveiro, secar mais um pouquinho ao ar e pronto. Vestido, parecia até gente. Fiquei satisfeito. Pus língua para a desalmada da lavadeira pentecostes.
Às oito já estava perambulando pelo pequeno saguão do meu hotel, fazendo hora. Pensei até que era para ter certeza de que pouco tempo antes, ali mesmo, na recepção daquele hotelzinho desestrelado, aquela valquíria, desfilando sua beleza loura entre aquele sofá de courvim barato e o balcão encardido, havia me convidado para jantar, eu acho. Acendi outro Marlboro e fiquei vendo a fumaça empestear tudo. Me comprometi a não fumar enquanto estivesse com ela. Palavra do escoteiro que não fui. Ela não fuma. Ainda bem. Alguma coisa estava me arrastando para fora daquele torpor filosófico ser-ou-não-ser. Parecia a voz de um ganso, se eles pudessem falar...
- Seu André – era o rapaz que atendia na recepção, filho de um dos donos – meu pai disse que o senhor precisa pagar as contas atrasadas ou vamos ter que tomar providências. – o rapaz tremia um pouco, suava além do normal. Era virgem nas artes do comércio. E no resto, com certeza...
- Rapaz, fique tranqüilo. Amanhã vou fazer um vôo que vai pagar bem. Depois de amanhã já devo ter o dinheiro para quitar boa parte do que devo a vocês. – Notei o semblante do rapaz ficar leve, cara de missão cumprida.
- Ainda bem, moço. Estamos apertados e temos que cobrar o que nos devem. O hotel precisa de reformas e as coisas estão difíceis. – Falou quase pedindo desculpas. Eram gente trabalhadora, o errado aqui era só eu.
Quase oito e meia, atravessei a rua até o hotel de Astrid. Ela estava de cabelo solto, vestido de algodão, sandália de couro cru, sem salto, colar indígena de sementes e ossinhos brancos. Uma ambientalista perfeita. E bela!
- Que bom você veio! – Como se fosse possível um vivente digno de ser macho dar o bolo numa deusa loura daquela. – Queria comer churr... barbecue, you know? Estou com fome grande...
- Churrasco, Astrid. E você está linda. Vou te levar à nova churrascaria ao lado do posto de gasolina. Fica meio longe, você quer andar ou quer pegar um táxi? – Me lembrei do pouco dinheiro que ainda tinha, a lavadeira quadrangular vai ficar para depois...
- Vamos andar. Faz tempo não passeio. Gosto de você, foi bom sair com você. Noite bonita.
A vida me prega dessas peças! Um mulherão desses, lindamente vestida e perfumada, dizendo que gosta de mim e eu, sem saber se ela está falando isso porque é realmente o quer dizer, ou apenas não sabe dizer outra coisa. Êta vida...
A churrascaria, como toda churrascaria de beira de estrada, é um horror. Toalhas de plástico quadriculado, mesas e cadeiras de madeira dura e cheia de quinas, um buffet de saladas reformadas do almoço (me lembrei da camisa) onde também estão pratos e talheres. Você passa por ali, se serve dos pratos frios, vai para a mesa dura, e lá vem a enxurrada de carnes nos espetos, gaúchos suados e facas enormes. Os pratos quentes, são os já batidos arroz, feijão, polenta e banana fritas, que vieram em seguida. Mais espetos. E caminhoneiros barulhentos. E calor. O televisor engordurado vomitando notícias. O plástico da mesa se levantava toda vez que eu erguia os braços, pregado no suor inconveniente. Tudo armado para mais um fracasso.
Minha valquíria pouco falou. Comeu à beça, explicando que só havia engolido bolachas naqueles dois dias. Comeu mais, elogiava a tudo, e comia mais. Só depois que percebi sua satisfação com a comida é que comecei a ter esperanças de reverter o anunciado desastre. E saboreei a comida. Boas carnes, bem assadas, cortadas apenas poucos minutos depois de saírem do competente braseiro, arroz soltinho quase goiano, a polenta e a banana sequinhas, realmente tudo muito saboroso e adequado. Relaxei. Pedimos sorvete e já estávamos totalmente alegres, desencanados e rindo de tudo.
Ela devia ter 31,32 no máximo. Olhos verdes muito claros. Busto pequeno, e alta, um e setenta e poucos, no mínimo. Deixou a Bélgica aos dezenove anos, nasceu numa cidadezinha próxima ao grande porto fluvial da Antuérpia, cresceu falando francês e flamenco. As florestas da Bélgica, Alemanha e França a instigaram a estudar Engenharia Florestal. No Canadá. É lá que se encontra a melhor graduação possível nessa área. E foi lá que aprendeu o inglês que permeia seu português raquítico. Logo descobrimos que meu inglês era melhor que seu português, e então o papo fluiu. Depois do sorvete falamos de política, filosofia, ecologia e, pasmem, aviação. Seus olhos brilharam ao convidá-la para caminhar os três quilômetros que separavam o engordurado plástico quadriculado, sob nossos cotovelos, do meu companheiro de alumínio e níquel.
A lua escandalosamente clara deixava o rubor de minhas faces parecer um borrão de ruge barato. E ela fazendo que não percebia. Eu estava em pânico. Temia deixar transparecer os momentos difíceis que estava passando, e afugentá-la. Tê-la perto de mim era muito bom. Queria que aquele passeio desse a volta ao mundo, não acabasse nunca. Já nem me lembrava do meu papo fácil em cinema e literatura, do que falei sem parar. Falei de minhas viagens, estudos, filhos, e até, quem diria, planos para o futuro. Ela fingiu maravilhosamente estar interessada e orgulhosa de minhas posições. Me fez sentir o bom moço que, até parece, fui um dia. Puxou-me para debaixo de uma marquise e me beijou a boca seca.
Capítulo 6
Estar no ar. Melhor que voar. Minha respiração já tinha voltado ao normal, antes ainda da dela, que agora era só um delicioso ronronar. Estávamos na cabina de meu melhor amigo, cortinas quase fechadas para deixar só um pouquinho da lua entrar, o carpete sujo me pinicando a bunda descorada. Cuidei para que sua pele alva só tocasse nossas roupas amarfanhadas, estendidas, forrando o assoalho. Tive a chance de deixar este carpete limpo ainda hoje, pensei, mas quem teria adivinhado?
Lembrava-me agora de que, depois do primeiro beijo, foi difícil chegar ao avião. Tropeçávamos um no outro, beijos sôfregos e abraços apertados, eu meio tonto com tanta paixão. O que era aquele furacão de olhos verdes me desabrigando e colocando meus sentimentos ao sabor dos elementos? Por que não tinha inventado uma desculpa qualquer e ido apenas beber nos habituais e encardidos copinhos de conhaque no bar do Plínio?
No avião, assim que fechei a porta, ela me fitou nos olhos, disse que ao fazer o convite para o jantar, tinha apenas vontade de bater um papo, mas que agora ela queria mais, achava até que poderia estar se apaixonando, mencionou alguma coisa sobre um noivo que estaria esperando no Canadá, mas que já havia se casado com outra, que os seus dois últimos anos haviam se passado em selvas da Sumatra e Amazônia, e que ela estava adorando estar com este piloto desnorteado.
Na minha infância já tinha ouvido, de meninos mais velhos, orgulhosos de sua já vasta experiência sexual, advinda de bolinar as domésticas do edifício no hall do elevador, a expressão “muita areia pra meu caminhãozinho”. O corpo nu daquela mulher, enlaçado ao meu, com uma delicadeza de poema, aqueles mamilos rosáceos entre meus dedos, o perfume dela envolvendo meus sentidos, a penugem macia de seu púbis tocando minha perna ainda trêmula, me faziam pensar que aquele era o tanto exato de areia que estava faltando em minha vida. Só não me lembrava era desde quando me dava o direito de pensar em tentar de novo.
E se, ao acordar, ela dissesse que houvera um engano, que ela já estaria voltando ao Canadá, à Bélgica, a Marrakesh? O WWF estaria mandando ela e sua equipe ao Mato Grosso, ou a Calcutá. Alegria de pobre dura pouco...
Passava da meia-noite quando ela abriu preguiçosamente as pálpebras emolduradas de cílios muito claros. – Meu querido, por que não me acordou? Sei que estará voando em poucas horas e precisa estar descansado. Prometa que assim que pousar mandará me avisar, para que eu possa vir te encontrar. Trarei frutas frescas e vamos juntos ao riozinho aqui perto, ficar quietinhos ouvindo o barulho da água naquelas pedras. – Seu inglês acadêmico parecia música aos meus ouvidos. – Vamos, precisa se deitar, agora que tem compromisso com essa pobre estrangeira perdida no seu lindo país!
Vesti minha roupa amarrotada. Seu perfume insistia em estar lá. Ajudei-a descer do avião, todo educado e cuidadoso, namoramos pelo caminho de volta. Adolescentes. Mãos dadas, beijos melosos e juras de amor eterno.
À porta de seu hotel, sob a luz modesta da rua, a despedida me lembrou filmes antigos.
Duas da manhã. O cubículo e seus pertences azedos estavam me esperando para a realidade. A carruagem voltava a ser abóbora. O sonho delicioso se desvaneceu e deu lugar às preocupações com o dia seguinte.
Medo. Sempre temi ter algo nas mãos, que me fosse caro e importante, que viesse a me faltar. Isso me tirou muito da vida. Só tentei ser dono do que sabia que podia eventualmente perder. Deixei de amar quem, por capricho do destino, pudesse deixar de me amar. Medo do risco, de ter que curar feridas. Errei. Perdi muito mais deixando de amar do que se tivesse me lançado ao ar.
Capitulo 7
Hoje o dia seria cheio. E, afinal, poderia ser o dia em que as coisas começariam a melhorar. Seis e trinta. Banho rápido, roupa suja, café bem preto, na recepção do hotel. Montado na bicicleta, fiz força nos pedais, eu e ela gemendo, cheguei à pista com atraso de apenas dez minutos.
Não que o atraso me incomodasse. Sempre desleixado com horários, talvez tenha sido essa a primeira forma de irritar meu pai, doente pela impontualidade, que interpretava como forma de desrespeito. Para ele, deixar alguém no ponto era imperdoável. Eu, desde sempre, simplesmente não acordava. E daí? Ninguém podia me fazer mal. Estava protegido pelo escudo invisível posto lá por meus pais.
Mas hoje, era diferente. Queria agradar até a meu pai. Por isso corri. Atrasei só um pouco e me dei por feliz. E olha que a noitada de ontem fora memorável...
Lá estavam o topógrafo e dois ajudantes. O pequeno pick-up, agachado sob os 600 e poucos quilos. Todos já suavam. Acenei rapidamente para eles e contornei o avião. Abri a porta de carga, que não tinha esse nome, eu quem pus. O Sêneca tem duas portas: uma à frente, à direita, dando acesso aos dois bancos de vante; e uma atrás, à esquerda, maior, dando acesso aos quatro passageiros na porção anterior da cabine. É a essa última que rebatizei de porta de carga. Verifiquei a arrumação da tralha, que eu teria que lançar. Ajeitei um por um dos volumes, antecipando em ordem inversa o lançamento, ensaiando mentalmente o arremesso e colocando o volume na posição mais adequada à rapidez da operação. Peso distribuído, preparativos checados, fechei a porta e me adiantei para despedir de meus contratantes.
- Fiquem tranqüilos, a carga chegará bem ao seu destino. Voarei a 1200 pés de altitude, a uma velocidade média de 240 quilômetros por hora. Depois de decolar, estarei voando por duas horas e vinte minutos. É quando espero estar vendo o sinal de fumaça. Passe as últimas instruções pelo telefone. O lançamento é feito contra o vento, sobre a esteira de fumaça, a 150m de altitude. Estarei voando em círculos, no piloto automático, repetindo as coordenadas do primeiro lançamento. – Expliquei mais para mim mesmo do que para o atarantado topógrafo.
- Pode deixar Sr. André. O pessoal em terra está ansioso pelo sucesso de sua missão. - Disse o jovem técnico. Não pude deixar de rir. Me senti o legítimo herói na pele do astronauta partindo para descobrir novos mundos e trazer glória à espécie humana.
- Ok, até a volta então. São sete e dez. Estarei decolando às sete e trinta. Conte o tempo a partir daí que vai dar tudo certo. A perna da volta deve demorar pouco mais de duas horas. Se quiserem vir confirmar se deu tudo certo, é só vir até aqui ou me esperar no Hotel Concórdia.
Aqueles vinte minutos compreendiam os checks das empenagens, trem de pouso, drenagem dos tanques, checagem de instrumentos, inicialização de radar e VOR, bem como primeiros contatos de rádio com o controle de Vilhena. O acionamento de bombas, aviônicos e magnetos, bem como o contato final para início do táxi, eram feitos juntos com as últimas etapas de checagem. Às sete e trinta e seis já estava com a pista de terra desfraldada à frente do bico do meu avião, contra o sol já alto, vento de proa a 6 nós. Excelente!
Liberada a decolagem pelo controle Vilhena, confirmei rumo e destino e descansei o fone na coxa, apertei o cinto, fechei a portinhola de ventilação. Flaps a dez graus, motores a 2700 rpm, o pássaro nervoso quer voar. Solto os freios, olho na velocidade do vento, mantenho o que eu acho que é o meio da pista sob a barriga do avião, vento a 80 milhas, puxo delicadamente o manche e a vibração das rodas, em contato com o solo, desaparece. Estou no ar novamente. O prazer é quase sexual. Astrid, você podia estar aqui. Vendo o que seu apaixonado namorado de um dia sabe fazer tão bem. Vento a 120 milhas, 600 pés de altura, trem de pouso recolhido e travado, as bombas hidráulicas silenciam. Puxo os manetes até 2500 rpm, olho no altímetro e no horizonte artificial, sinto um ventinho de través, coisa fácil. Nivelo a 1200 pés e começo a assobiar.
Estar aqui em cima sozinho é quando gosto de me lembrar de minha mãe. Silenciosa, a falsa calma escondendo uma leoa, principalmente na defesa de seu único filhote. Sempre se arrependeu de ter tido apenas um filho. A pressão alta e o medo de novos abortos fizeram-na se acovardar. O apoio incondicional de meu pai na decisão de terem um só filho ajudou a superar a culpa. Fez de tudo para me ver feliz. Escola, roupas, passeios, festas, presentes, viagens, dedicação de tempo integral. Tudo conforme o figurino. Tudo sob o mais rígido controle, e aí a coisa pegava. Desde cedo o meu desconforto com aquela redoma era gritante. Aquilo me incomodava até estar aos gritos com ela, coitadinha...Aí ela chorava, eu me desculpava, ela me impunha o secular castigo, eu me dobrava mais uma vez e assim foi até meus hormônios começarem a pipocar pelo meu rosto, aos treze.
Morávamos em edifício de classe média alta, cercados de conforto e obrigações sociais. Das quais fugia como o diabo da cruz, a começar pelos sacramentos da Igreja Católica, fiz primeira-comunhão e crisma na marra, a reboque. Só o estoicismo de minha mãe para me arrastar àquelas intermináveis aulas de catequese, onde não queria estar nem amarrado. E eu, malandro como pulga de hotel, me escudava no fato de meu pai ser agnóstico. “O agnosticismo é a crença em Deus sem o concurso da religião e suas práticas dogmáticas”. E assim, sem entender bulhufas dessa misteriosa posição, adotei-a por servir melhor aos meus propósitos de ovelha desgarrada praticante. E tome patins, patinetes, bicicletas, pipas, matar passarinho, roubar manga nos vizinhos, carros de autorama, jogos, violão, e tudo o que eram moda entre os vizinhos do prédio e da redondeza. Escola, o mínimo para passar de ano, e passei em todos, miraculosamente. Meus Pais eram sempre chamados à escola. “O André é um menino ótimo, só que bastante levado”...
Quase dez da manhã. O vôo tranqüilo e sonolento me fez quase sonhar com Astrid. Teimava em admitir, mas estava louco por ela. E com saudades. Desligado o piloto automático, passei a checar coordenadas e fazer pequenas correções de rumo. Logo avistei o inicio de uma fogueira de folhas. Estava iniciando e logo percebi o exagero: devem ter ateado fogo a uma tonelada de folhas. O vento, que agora era de no máximo 5 nós de sudeste, me obrigou a uma longa volta para tomá-lo de proa. Na primeira passagem, marquei no GPS a coordenada de lançamento. Na segunda, piloto automático acionado, pulei para a traseira da cabine e iniciei a série de lançamentos. Percebi que o piloto automático estava funcionando mal, com dificuldades de manter o nivelamento, provavelmente por causa da proximidade com o solo. Isso me obrigou a ajustá-lo a cada passagem, o que me fez rebater o banco do co-piloto e ficar pulando sobre ele a cada passada. A operação ficou demorada e cansativa. Ao tempo do último lançamento, já tinha batido a cabeça em vários locais da cabine, bem como joelhos e canelas. Estava suado e nervoso. Quando fui fechar a porta traseira, ela se recusava a se encaixar nos pinos guia, forcei o que podia e nada! Praguejei alto, voltei ao assento, dei motor e voltei a subir, procurando uma altitude em que o avião jogaria menos e fosse possível nivelar e aproar corretamente, usando então o piloto automático, que a estas alturas estava menos católico que eu.
Aeronave estabilizada, voltei à porta. Não havia meio dela se fechar, e se ela não travasse, o consumo de combustível maior me obrigaria a uma escala que imaginava nem ser possível. É nessa hora que gostaria de ter comigo um desses caras que acha que é só planejar que tudo acontece direitinho, ora bolas! Tentei mais um pouco fechar a porcaria da porta, em vão. Deitei a danada ao piso da cabine. Vou ter que encontrar um lugar para pousar No solo, esperava poder fechar a porta direito, nem que fosse a machado. Voltei ao cockpit, mapas na mão e... Não havia pista alguma por ali. Agora fodeu! Respirei fundo, régua de cálculo e compasso na mão, comecei a procurar mais longe.
Achei. Uma pista reportada como de retiro indígena. Podia estar sem condições de uso. Mas eu tinha que tentar. Fiz contato com aeronaves que porventura estivessem por perto, mas nada! O controle de Vilhena não sabia precisar a condição da pista. Podia ter sido inclusive dinamitada pela Polícia Federal no esforço de contenção da movimentação de garimpeiros pela área, disseram. Bonito, e agora?
Já havia estado em situações complicadas antes. A primeira delas foi realmente de lascar. Assim que botei as mãos no sonhado brevê PP, de piloto privado, minha vontade imediata era de continuar a formação até o respeitado PC, de piloto comercial. Assim, por intermédio de amigos de meu pai, sempre ele, consegui um tipo de estágio em Táxis Aéreos de Goiânia. É comum, em vôos tranqüilos, curtos, com poucos passageiros, tempo bom, que não envolvam pernoite, pilotos mais experientes de táxi aéreo dar o lugar da direta para pilotos em formação. Assim, um de meus primeiros vôos de carona, o terceiro, para ser exato, seria num Cessna 140, já então com mais de trinta anos de uso. Avião pequeno, quatro lugares e motor de apenas 90hp, era o jipe dos ares. Seguro e confiável, além de econômico, é comum em escolas de aviação e táxi aéreos de todo o mundo. O vôo seria de Goiânia a uma fazenda no Mato Grosso, com escala técnica em Baliza, oeste do estado de Goiás. A carga, de medicamentos veterinários, era esperada com urgência e tivemos que nos aprontar rapidamente. O piloto, à época com mais de setenta anos era veterano da Segunda Guerra, tinha estado voando P-47 Thunderbolts na Itália e depois, ainda na Fab, Gloster Gladiators e Douglas DC-3 no Correio Aéreo Nacional. Era um monumento à aviação. Mudara-se para Goiânia à época de sua aposentadoria e, além de instrutor na Escolinha, e palestrante requisitado, adorava fazer pequenos trabalhos com seu 140. O convite para acompanhá-lo foi uma grata surpresa e aceitei sem pestanejar.
Depois dos procedimentos iniciais, checks de rotina, táxi e decolagem, minha confiança naquele velho piloto era total. A idade não se demonstrava nos movimentos firmes e confiantes daquele ex-piloto de caça. O papo, agradável e sereno, era o de um avô passando experiências importantes ao neto ansioso. Além do Aeronca da escolinha e dois vôos de Sertanejo do Táxi Aéreo Goiás, nunca tinha voado em mais nada. No Sertanejo, o piloto, um carioca afetado, nem me deixou tocar no manche. Só servi para carregar malas e repor bebidas e salgadinhos para o casal de passageiros. Aliás, uma morena jovem de estonteante beleza e um comprador de gado de Ribeirão Preto, de mais de sessenta...
Agora era diferente. Assim que o avião se estabilizou, meu velho novo amigo já me passou os controles e se recostou, como quem diz: toma que a criança é sua. Banquei o manicaca até me acostumar com o avião, e tudo correu muito bem até o pouso em Baliza. A escala se destinava apenas a reabastecimento, feito manualmente com tambores e funis. Pedi ao velho piloto que assumisse a operação de descida, me sentia inseguro e ele entendeu com um sorriso largo encimado pelo bigode de pelos brancos amarelados pelo fumo. O Comandante, ao vir para pouso, havia deixado o avião percorrer longo trecho sobre a parte mais do lado esquerdo da pista, cheia de mato, principalmente capim braquiária.
O pouso foi brusco, mas ele nada disse. Saiu do avião, pediu que assumisse a operação de abastecimento, me deu o dinheiro, balbuciou alguma coisa sobre dar uma caminhada, acendeu um cigarro e se afastou. Depois de uns bons quinze minutos, enrolado com mangueira, balde e funil, percebi o velho ás dobrado sobre os joelhos. Pulei de cima da escadinha, pois o tanque é acima da cabina, e corri ao seu encontro.
- O que foi, Comandante Félix? Está se sentindo mal? O que posso fazer pelo senhor? – Perguntei esbaforido e já sustentando seu corpanzil.
- Estou bem filho. Minha cabeça dói um pouco. Deve ser o sol. Me arranje um copo d’água que eu já melhoro de vez. – Falou sem a menor convicção.
Acompanhei meu companheiro de vôo até o avião, tomei da garrafa térmica a tampa com água fria pela metade e dei a ele, que sorveu tudo de um gole e já um minuto depois apresentava outro semblante, bem menos congestionado.
Insisti para que fôssemos ao hospital da cidade, pequeno, segundo o homem da gasolina, mas muito bem arrumadinho... Ele não quis, disse que já estava melhor e, depois, o piloto era eu. Orgulhoso com o elogio, tomei as rédeas da situação. Terminado o abastecimento, manobrei o avião, tomei o assento da esquerda, acomodei meu Comandante no banco ao lado, que afastei o máximo e posicionei na única posição de inclinação possível. Travei a porta e postei o Cessna na cabeceira da pista. Rotação a 2400 rpm, soltei os freios comecei a louca corrida serpenteante, característica de um avião com trem de pouso convencional.
Diferente de um avião triciclo, que tem três rodas de mesmo diâmetro, uma delas à frente, ligada ao manche e de fácil controle pelo piloto, o trem de pouso convencional consistia de duas rodas embaixo do banco do piloto e uma bequilha, pequena rodinha de menos de um palmo de diâmetro, embaixo da empenagem de leme, lá atrás. Assim, decolar era como dirigir um velocípede, esse mesmo, que todo mundo anda quando é criança, só que de ré! À trajetória bamboleante, somem-se os buracos da pista de terra e o nervosismo natural de um inexperiente piloto diante de um ícone sagrado, e tem-se um quadro que se deve evitar a todo custo. Quando a velocidade do vento chegou às 55 milhas, já aliviei o manche, o pássaro voou e, a 30 pés por minuto no climb, meu coração voltou a bater.
Lentamente, a situação se normalizou, aproei para as coordenadas da fazenda, nivelei a 900 pés, céu claro, vôo visual padrão e, comecei a escutar um descompasso no barulho do motor.
- Comandante, estou percebendo um rateio no motor. – Falei quase gaguejando.
- Só agora, meu filho? Percebi faz tempo... Pode ser sujeira no carburador. Puxe o manete de mistura, vamos ver se desentope... – Falou com segurança e fiquei mais tranqüilo.
Manobrei o manete, empobrecendo e enriquecendo a mistura ar/ combustível, na esperança de romper a obstrução. Nada. Acelerei e desacelerei o motor, também várias vezes. O motor já estava rateando de maneira séria, era possível perceber os trancos entre os tempos em que havia combustível na cela dos pistões, e quando ela explodia em seco. O Comandante, para piorar, já estava passando mal de novo, agora fazendo caretas e pressionando as têmporas. Disse com dificuldade:
- Filho, você vai ter que ser muito corajoso. Nosso pouso em Baliza com certeza fez a hélice jogar capim e terra na tomada de ar do carburador. O rateio é de falta de ar na mistura. Você vai climbar (to climb é o verbo em inglês para ascender, subir) a 3000 pés, e vai ter de mergulhar. A alta velocidade do mergulho deve limpar a tela da admissão. – Virou para o lado e desfaleceu.
Apavorado, sem olhar para o velho Félix, dei tudo no manete e, assim que a velocidade do vento aumentava, subia mais um pouco, e fui negociando vento por altura até 2.200 pés, altitude onde nunca tinha estado antes, quando o motor, num último suspiro rouco, deu seu último sinal de vida. Bem, o mergulho vai ser de 2.200, então. Meu sangue frio me gelou a fronte. Empurrei o manche, e vim a pique para o solo. O altímetro girava loucamente, 1800, 1700, 1400, a velocidade do vento só aumentando, 120,130,145 milhas por hora. O pequenino avião já tremia, o motor em sobre giro, a hélice cavitando. A seiscentos pés, a uma velocidade estonteante, que eu nem imaginava mais qual era, liguei os magnetos e dei duro no manche e nos pedais para nivelar. Assim que consegui nivelar percebi o ronco do motor, que havia pegado novamente, provavelmente porque aquele mergulho estúpido havia feito o ar arrancar o que obstruía a carburação. Sem pensar em mais nada, rumei de volta para Baliza, então a vinte minutos de distância. Pousei de qualquer jeito, taxiei levantando muita poeira e, quando parei o motor, tive então coragem de olhar para o lado. O Comandante Félix estava inconsciente, mas ainda respirava.
A camioneta carregada de capim que passou na beira da pista veio bem a calhar. Deitei o Comandante sobre o verde macio e implorei a carona até o hospital. Minutos depois, sobre a maca do pronto socorro, o jovem médico dizia que, mesmo antes dos exames preliminares, era possível prever o derrame, tecnicamente chamado acidente vascular cerebral. Em grandes altitudes, a pressão sanguínea tende, inclusive, a aumentar.
O Comandante, ao me orientar a subir mais ainda, havia piorado sua situação. A artéria que havia se rompido no seu cérebro, submetida a mais pressão vinda do coração, só piorou seu estado.
O trauma passou rápido, e a avaliação que fiz do meu comportamento me fez pensar que era um herói. O Comandante, com graves seqüelas do derrame, não voou mais e definhou até morrer dentro de um ano. Depois, percebi que coragem e atos de heroísmo quase sempre acontecem por acaso, ou sorte, no calor da hora. Você dificilmente consegue ser treinado para responder às emergências. Você deve se capacitar ao máximo e, na hora “h” ter o sangue frio necessário para deixar os instintos agirem. Naquela época, os ensinamentos de meu velho pai às vezes me faziam algum sentido.
Capítulo 8
Instintos, cadê vocês? Será que essa pista que devo avistar em alguns minutos ainda existe? Está em condições de receber um bimotor? Será que vou conseguir encaixar a porta para seguir de volta? Ah, Astrid, você vale cada minuto de esforço para ir a seu encontro...
Lá estava ela. A clareira na mata era o primeiro sinal. Mas, a pista já estava mergulhada em capim e mato rasteiro. Acho que já pousei em piores. Só estou achando um pouco curta. Vamos lá, fiz a aproximação de praxe e vim para pouso, flaps ao máximo, o motor só beliscando, pousei. A desaceleração foi violenta, temi pelos desgastados pneus. Gelei: a pista estava com uma camada de areia fina e solta que devia ter quase um palmo! Aquilo ia ser pepino na certa. Deixei o avião correr até o final da curtíssima pista, e já manobrei para ficar em posição de táxi. Desliguei, respirei fundo e gritei para ninguém: merda!
Voltei à parte traseira da cabine, ajoelhei diante da porta e comecei a tentar entender o porque dela não querer fechar... Simplesmente, porque ela já estava fechada! Todos os ferrolhos estavam na posição “lock”. Por algum motivo, depois de retirá-la para proceder ao lançamento da carga dos topógrafos, devo tê-la trancado. Se burrice doesse, eu deveria viver aos gritos! Na fogueira de tentar colocá-la à força, ainda em vôo, acabei danificando o mecanismo, que agora estava irremediavelmente pifado. Talvez, se eu tivesse as ferramentas para desmontar a porta, e principalmente o tempo, vá lá. Mas, já quase uma da tarde, numa pista abandonada e que ainda me daria o que fazer para decolar, nem pensar. Acho que devo decolar e, sabendo que o combustível não era mais o suficiente para chegar a Pimenta Bueno, procurar pouso seguro e fazer uma escala para reabastecer.
Levei o avião até o finalzinho da pista e, usando os motores para manter o rumo, porque a bequilha estava atolada, minha manobra levantando uma nuvem inacreditável de areia branca, virei para a pequenina pista. Percebi que seria uma sorte enorme decolar com sucesso. Mesmo em condições normais, a pista era muito curta, feita provavelmente para os pequenos J-3 dos indigenistas de mais de trinta anos atrás. Foi a areia acumulada durante aqueles anos que tinha tornado estéril a superfície do solo, o que manteve a clareira aberta. Tinha sido um erro pousar ali! Com o passo das hélices ao máximo, potência à toda, soltei os freios. Senti que o avanço era constante, mas penoso. Os pneus estavam sub-calibrados em função do muito desgaste. Pensei em abortar, mas o ponteiro de velocidade do vento deu sinal de vida. Manche na ponta dos dedos, o avião correu um pouco mais com a menor resistência da areia. Não vai dar, pensei, mas imaginei já ter ultrapassado o ponto sem volta.
As árvores altas ao final da pista já estavam enormes. A velocidade do vento já estava chegando às 75 milhas necessárias para a decolagem. Vai dar. Puxei com tudo, achei até que ia bater nas árvores, quando não via mais folhas e galhos à minha frente, pensei: estou escape! Mais uma vez!
A pancada foi seca, mas muda. Preocupei-me com o trem de pouso, que poderia ter recebido o choque. Mas não, ele se recolheu naturalmente e a pressão do sistema hidráulico estava normal. Chequei a pressão do óleo dos motores, a pressão na linha de combustível, tudo estava normal, descansei. Trimei (neologismo aeronáutico para o uso do trim tab) o avião, tudo bem. Eu sou o máximo, escapei de mais uma! Agora era calcular, com uma folga de segurança, a autonomia, levando-se em conta a porta aberta que aumentava, e muito, o arrasto e, portanto, o consumo de gasolina, escolher uma pista segura, pousar e conseguir o combustível para voltar. Só isso.
No Brasil, chamamos de aviação geral essa atividade que usa pequenas aeronaves particulares. Normalmente, engloba empresários e fazendeiros que pilotam seus próprios aviões para tocar seus negócios, pilotos de seus próprios aviões que se prestam a serviços de terceiros, como eu, e pilotos empregados de companhias de táxi aéreos ou de proprietários não pilotos. As aeronaves em geral têm mais de 20 anos, a maioria fabricada nos Estados Unidos pela Beechcraft, Cessna, Piper e Mooney. Os motores, também americanos, normalmente Continental e Lycoming, podem ser carburados, injetados e até turbinados. Esta belezinha que estou voando foi feita no Brasil pela Embraer, sob licença da Piper. Hoje é a Neiva quem detém os direitos de fabricação daquela marca. Tudo muito bonito, mas pega nas péssimas condições de operação. Com exceção de grandes centros, a manutenção é sempre deficitária e cara. Mão de obra escassa e mal-treinada é lugar comum. O triste da história é que é sempre nos mais remotos rincões do país é que os aviões são mais necessários. É exatamente lá que eles voam muito e estão mais distantes dos cuidados necessários. O Departamento de Aviação Civil tem estatísticas horrendas sobre o teor de fatalidades por número de horas voadas, principalmente em áreas garimpeiras e madeireiras. Pilotos e aeronaves têm sido os heróis na conquista desse Brasil imenso. Romântico e piegas, não deixa de ser verdade. E foi o que me atraiu à profissão. Aventura, desafio, respeito dos comuns, namoradas, dinheiro, ver lugares sempre novos... Como se tudo fosse cor de rosa.
Voltei a pensar em Astrid. Aqueles contra-tempos estavam me distanciando da hora em que estaria com ela. Aliás, já está passando da hora em que deveria estar de volta e ela já pode estar ficando preocupada. É bom estar sendo esperado. Nos faz pensar que pertencemos a um lugar.
Meu pai, que parecia saber sobre tudo que falava, dizia que os vikings, que estiveram navegando e conquistando terras em todo o Atlântico Norte por mais de dois mil anos, enfrentando todo tipo de mar bravio, fazendo guerras quase sempre em inferioridade numérica, tinham a força de suas mulheres sempre com eles e, por isso, sempre voltavam aos seus portos de origem. Diferentes dos romanos da mesma época, de cujo império os cidadãos raramente conheceram a capital, a diáfana Roma.
A vontade, mais que necessidade, de estar de volta são e salvo me surpreendeu. Muitas vezes me vi pensando que voltar para lugar nenhum era quase tão ruim quanto não voltar. Cheguei, em algumas ocasiões de forte depressão, a quase desistir dessa vida sem sentido, deixando que o avião fosse de encontro ao nada e me levasse junto, com o nada que já me habitava.
Tinha chegado o momento de voltar o consumo de combustível para o tanque direito. Aviões de asa baixa, como este, têm seus tanques de combustível dispostos nas asas, um à esquerda e outro à direita, claro. Cento e quarenta litros cada um, duzentos e oitenta litros no total, a quarenta litros por hora de consumo médio, seis horas e meia de autonomia mais um tantinho de reserva técnica. Durante o vôo, o combustível deve ser gasto ora de um, ora de outro tanque, para evitar que o avião fique penso para o lado do tanque mais cheio. Assim, de tempos em tempos, aciona-se uma chave comutadora que fica no centro do console entre os bancos.
Pelas minhas contas, além dos vinte e cinco litros ainda no tanque esquerdo, eu ainda tinha uns cinqüenta litros no tanque direito, o que dava com folga para alcançar a pequena pista de fazenda, nos limites do parque, escolhida para a escala. Toda fazenda tem combustível armazenado, e eu só precisaria de mais uns sessenta litros para chegar a Pimenta.
Virei a torneira para o ponto neutro, esperei acabar o combustível da linha, os motores silenciaram, e virei a chave para a direita, esperando os motores pegarem com o combustível já do tanque direito. E nada! O que houve? A luz espia indica que a bomba está em ordem. O marcador de volume está... vazio! Meu Deus, o tanque direito está seco! A pancada. Só pode ter sido isso. O tanque pode ter se rompido e deitado fora meu precioso combustível.
Estava perdendo altura, precisava reagir à situação. Voltei para o tanque esquerdo, os motores roncaram, voltei a subir e, climb em 100 pés por minuto, fui a 1400 pés. Preciso pensar.
Tenho trinta e cinco, quarenta minutos de autonomia, no máximo. Preciso pousar nesse tempo, senão estou frito! O mapa não indica nenhuma pista dentro da reserva. Estrada, clareira, fazenda, nada. Pode ser que haja algum lugar para pousar que não esteja catalogado. Pode ser. Vou manter o curso para a já inalcançável fazenda onde faria a escala e ver se dou sorte...
- Papa Tango Victor Oscar November. Mayday. – A coisa estava ficando preta!
Acionei o controle de Vilhena, relatei a situação, rota, posição, e fiquei escutando o operador tentar contatar outras aeronaves na região. Nada. Também não souberam informar nada além da carta aeronáutica já em minhas mãos. Esperar. Mais nada a fazer. Trinta e cinco minutos, se tanto. Não mais estava chocado ou nervoso, apenas atento. Com os olhos perdidos naquela imensidão de selva logo abaixo, pensei pela primeira vez que poderia morrer...
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